No artigo anterior, apresentei uma reflexão sobre o Dom Bosco do “da mihi animas” – dá-me as pessoas. Foi uma tentativa de colocar em evidência um perfil do nosso fundador que reforça nosso caminhar com ele. Nesta segunda parte, apresento o que não corresponde a Dom Bosco. Um pouco daquilo que ele ao longo de sua vida deixou para trás para ser um padre diferente, missionário dos jovens.
O que é, de fato, o despojamento salesiano? Procuro assim, destacar o supérfluo, o “mundanismo espiritual”, como diz o Papa Francisco, ou na linguagem Paulina, lixo, em comparação com aquilo que é essencial no carisma do fundador.
O Dom Bosco do “cetera tolle”- “fica com o resto” - é aquele que não aceita ser medíocre, um padre que se esconde embaixo das grandes utopias, fazendo o menos possível, enquanto pode fazer o mais e o melhor. Ele queria e foi diferente. Não aceitou ser apenas um padre sábio e repetidor de conhecimentos. Ele tocou na carne dos adolescentes e jovens mais pobres e fez com eles um caminho de libertação.
O Dom Bosco do “fica com o resto” foi ousado, concreto e soube dar respostas objetivas a problemas reais. Renunciou, portanto, a um idealismo intelectual que gasta muito tempo com normas, princípios e leis eternas, mas não chega a atender as necessidades das pessoas, sobretudo dos adolescentes e jovens.
O Dom Bosco do “fica com o resto” despojou-se de honras, carreirismo eclesiástico e dinheiro. Foi amado e odiado, acolhido e rejeitado, perseguido e caluniado, mas não buscou proteções para si; aliás, teve a proteção divina, com o famoso cachorro Grigio, que aparecia nos piores momentos e o salvava das armadilhas.
O Dom Bosco do “fica com o resto” não foi preguiçoso. Abandonou a possibilidade de uma vida cômoda, cheia de privilégios, sem grandes preocupações e não apelou para maracutaias em busca de dinheiro e fama, muito menos apresentou os meninos como problema para conseguir o afago dos ricos. Dom Bosco foi um incansável trabalhador que conseguiu canalizar forças e recursos para o bem dos adolescentes e jovens.
O Dom Bosco do “fica com o resto” rejeitou toda indiferença quando o assunto era o bem dos jovens. Ele tocou nas mazelas humanas, não virou o rosto para as injustiças sociais e não se omitiu em falar com os poderosos quando o assunto era a verdade e a justiça. Costumava dizer aos jovens: “Por vós trabalho, por vós estudo, por vós vivo...”.
O Dom Bosco do “fica com o resto”não foi grosseiro, avarento e possessivo. Sua pobreza e simpatia eram percebidas por todos. Sabia atrair o mais humilde e o mais rico. Não acumulou riquezas, bens e títulos, nem fez de seu prestígio um “buraco negro” para se beneficiar; ao contrário, multiplicou os talentos, investiu e soube inovar para educar evangelizar (Lc 19,11-28).
O Dom Bosco do “fica com o resto”não foi superficial e muito menos um mundano espiritual. Não se apegou às estruturas rígidas do seu tempo, nem usou do poder de fundador para impor sua vontade. Valorizou jovens do Oratório e criou com eles um governo colegiado, suscitando vocações, descentralizando decisões. Governou com espírito livre sem perder a firmeza e a doçura.
O Dom Bosco do “fica com o resto”não desiludiu as pessoas com promessas, pactos ou conchavos em benefício próprio. Não aceitava a manipulação dos jovens para práticas nacionalistas e políticas de Estado. Não se cercou de amigos para tornar-se superior a todos. Nem deixou-se seduzir pelo poder.
O Dom Bosco do “fica com o resto” não foi um homem possessivo. Soube reconhecer nos outros o valor e os talentos. Partilhou de forma profética sua missão com um jovenzinho chamado Miguel Rua, seu primeiro sucessor. Quando organizou a primeira expedição missionária para a América, enviou os melhores salesianos que tinha, colocou como chefe da expedição um dos primeiros oratorianos e grande músico com capacidade de liderança, Cagliero, que se tornou o primeiro bispo e cardeal salesiano.
O Dom Bosco do “fica com o resto”não aceitou cargos burocráticos, simplesmente colocou-se a serviço da Igreja como mediador dos conflitos. Não aceitou o título de monsenhor e não negociou vantagens políticas em troca de sua dignidade. Sua vida de padre pobre de periferia era conhecida por todos. Teve tudo para viver como um senhor, mas preferiu ser servo de todos, sobretudo dos jovens. Quando o assunto era a defesa do Papa, não se omitia e foi obediente até quando isso lhe custou grande sacrifício.
Dom Bosco não nasceu pronto, mas soube ser movido pelo Espírito Santo. Por isto é santo e nos inspira ainda hoje.