“Não escolhi o Haiti, pois poderia ter sido outro país, outro lugar, mas nesse momento devastador, foi o Haiti - terra de montanhas! Lembro-me que estava em férias em comunidade. Eram dias bons, tranquilos. Foram instantes de medo e coragem, experimentei vários sentimentos opostos. Pensei: o que fazer? Grande momento! Não esquecerei jamais. Era uma situação que eu não estava esperando. Uma resposta estava no ar: sim ou não. Tudo passou rápido, pois com as novas tecnologias, as imagens chegavam como uma cascata pela televisão. Analisei-me e vi que tinha alguns requisitos para essa nova missão, tão inesperada e dura. Mas humanamente, me sentia pequena diante da realidade a vir. Deus completaria, no momento oportuno, os outros requisitos, se fosse preciso, e foi o que aconteceu. Estou feliz por ter dito Sim. Outros virão. E é lindo saber que eu não estava sozinha e que participava de uma ação de família humana, família Igreja e Família Salesiana. Agradeço a Inspetoria das Irmãs Salesianas de São Paulo que me encorajou, apoiou, colaborou nesses anos e também agradeço a minha família que não colocou entraves na minha partida e me acompanhou nessa ação com as suas benções. Isso é divino! E isso aconteceu há quase seis anos.
São várias as dificuldades que encontramos hoje no Haiti. Não sei dizer qual é a principal dificuldade, pois um problema está ligado ao outro, mas penso que a instabilidade política gera uma instabilidade geral. Com isso, os investidores internacionais e também os expatriados não têm coragem de investir no país, causando um desleixo total. A insegurança de aplicar capital e de tudo se perder causa medo. Há falta de emprego, de moradias dignas, de hospitais. Falta comida para todos, faltam escolas para todos dignamente, falta saneamento básico, limpezas nas ruas, coleta de lixo, água potável, rodovias e ruas asfaltadas nas cidades. Faltam espaços de lazer para os jovens, que estão amontoados nas cidades sem nada a fazer. Falta ônibus para o transporte coletivo - ainda não existe ônibus para a população, o que há são caminhonetes transformadas em meios de locomoção coletiva pública. O atual presidente comprou ônibus para o transporte coletivo de estudantes grátis, isso foi uma coisa inédita. Centenas de estudantes têm ônibus para ir e voltar para casa gratuitamente.
O Haiti não tem forca armada, apenas uma força de policiais com membros insuficientes e sem bons equipamentos para cobrir todo o país com eficiência, e aí a violência aumenta. A falta de confiança e de respeito entre as pessoas reduz a moralidade, aumentando o individualismo e o medo do outro. A família está desintegrada, pois se o pai de família não tem um trabalho digno, ele não tem condições de cuidar da sua família; a consequência é que ele cai na criminalidade, nas drogas, no alcoolismo, nas vendas de armas ilegais, enfim... é uma roda que vira sem parar.
Nesses últimos seis meses, houve uma violência sem comparação contra a Igreja, foi um terror. Comunidades religiosas - em especial femininas - foram atacadas, com violência, por parte de bandidos que operavam à noite bem armados e levavam tudo de valor que encontravam nas casas e escolas. O medo era concreto. A falta de energia elétrica cooperou para que pudessem ter mais facilidade para atos de bandidagem, e eram jovens na maioria dos casos. Vimos fotos de alguns nos jornais quando alguns deles foram pegos. Batiam nas irmãs, houve até mortes e estupro. Foram tempos difíceis que passamos nesses últimos meses. A Igreja de Jesus é perseguida hoje. Talvez alguns desses jovens tenham sido alunos de nossas escolas católicas, presentes em maioria no país. Que situação!
Várias coisas melhoraram consideravelmente no país. Mas ainda não é suficiente para que possamos ver as crianças nas praças limpas e com segurança, eletricidade nas ruas à noite e sem montões de lixo.
Esse povo tem me ensinado a ter coragem de lutar. A ter valentia e coragem de viver, mesmo em situações desumanas. Mesmo morrendo a cada minuto por tantas dores, eles seguem vivendo com garra, sonhando algo que é impossível em um tempo próximo. Lembrando que o Haiti foi o primeiro povo negro a se libertar da escravidão, com muito sangue, mas que segue ainda hoje escravizado de outras maneiras. Os haitianos arriscam ainda hoje passos de danças, canções de amor, que insistem e persistem até quando enfim a escravidão terminar; e dai poderão enfim viver como povo digno de sua cor de ébano roubada da África. Então será, enfim, a liberdade, onde todos poderão viver em paz.”