O lado esquecido: reinventando a(s) sociedade(s)

Segunda, 20 Abril 2020 11:25 Escrito por  Ricardo Lobato
A atual pandemia causada pelo coronavírus (COVID-19) é, sem sombra de dúvida, o maior desafio enfrentado pela humanidade desde o fim da II Guerra Mundial. Enquanto entre 1939 e 1945 o inimigo era a ideologia nazifascista, a atual crise tem como oponente um inimigo invisível, mas igualmente letal. Apesar de todo o perigo causado por esta criatura microscópica, os desafios a serem enfrentados são muito maiores do que apenas a emergência sanitária. A crise atual evidencia um problema prévio, um lado esquecido, uma tribulação que envolve elementos político-econômico-sociais e gera questionamentos quanto ao modelo de crescimento que vinha sendo implantado, não apenas no mundo ocidental, mas também no oriente, onde se iniciou a atual situação.  

A emergência sanitária que, por ora, exige como única medida eficiente o isolamento social, alterou a dinâmica de sociedades inteiras. Quem há menos de três meses, na virada do ano, podia imaginar que várias cidades ficariam com suas ruas vazias? De Pequim a Paris, de Nova Iorque a São Paulo, de Roma a Moscou, a circulação de pessoas foi interrompida. O fato de os indivíduos terem de se isolar em suas casas, de modo a impedir que o vírus se alastre pelo contato social, expôs um paradigma da sociedade moderna, expôs falhas do sistema vigente, que antes as pessoas ou desconheciam, ou sabiam, mas tinham ressalvas em aceitar. Expôs um lado aparentemente esquecido da sociedade: a desigualdade.

 

Neste cenário, muitos dos discursos de governantes, economistas, jornalistas e das falas de formadores de opinião e tomadores de decisão no geral, têm por mote o trade off entre vidas e empregos. Apesar de muitas atividades essenciais continuarem, grande parte da economia ou parou, ou foi posta em home office. O isolamento social e a recomendação – em alguns casos a obrigação – de ficar em casa para evitar que a doença se espalhe, levantaram preocupações antes esquecidas, ou simplesmente deixadas de lado.

 

Quando um morador de rua em Londres recebeu a ordem de um policial de ir para casa, este respondeu: “Que casa?”. Cenas como esta levantaram a preocupação do que fazer com os mais necessitados. Pessoas em situação de rua não são uma exclusividade de países em desenvolvimento, como o Brasil. Além de Londres, grandes cidades do mundo inteiro, principalmente nos países desenvolvidos, contam com indivíduos em situação de pobreza extrema. Em Nova Iorque passam de 50.000. Muitos são a herança maldita da crise do subprime de 2008. Em tempos de COVID-19 a sociedade resolveu olhar para essas pessoas, mas não apenas para elas, também para as favelas e comunidades, pessoas que vivem em grandes centros urbanos em situações precárias. Seja nas palafitas do Norte do país, ou nos barracos das cidades do centro-sul. Se é difícil conter a doença nos centros das cidades, ao atingir as comunidades seria o que está sendo chamado de “eugenia social”.

 

Também há discursos no sentido de apontar os problemas do transporte público. Com a recomendação de manter um mínimo de dois metros de distância para evitar o contágio, resolveram pensar nos pontos de ônibus, nas rodoviárias e nas estações de metrô lotadas que, em horário de pico, causam tanto desconforto aos trabalhadores, já cansados depois de uma jornada árdua. Também os trabalhadores informais passaram a ser fonte de preocupação. Milhões de pessoas que, impossibilitadas de sair de casa, são privadas de, muitas vezes, seu único sustento e de suas famílias.

 

É bom que em momentos de crise e de extrema necessidade, os olhos se voltem para aqueles que mais precisam. Mas a pergunta a ser feita é: por que só agora? Ao contrário do coronavírus, esse não é um fenômeno que começou nas últimas semanas. Precisou de uma pandemia para que esta triste realidade viesse à tona. No mundo inteiro estão sendo tomadas medidas de modo a mitigar essa situação. Para além dos indivíduos, os Estados começam a olhar por seus cidadãos mais necessitados.

 

Assim como o fim da II Guerra Mundial trouxe, depois de tanto sofrimento – e a despeito da idiossincrasia da Guerra Fria – uma era de prosperidade econômica e social, agora, novamente, uma nova era se desenha. O que será do mundo depois do COVID-19 não é possível afirmar. Entretanto, a paralisação mostra que, além de olharmos uns para os outros, as cidades estão mais limpas e o ar menos poluído. Com todos os seus males, será a crise de hoje a solução para a já existente (e persistente) crise do descaso? As tribulações de hoje podem ser a oportunidade de se construir uma sociedade mais preocupada com o próximo e com o meio ambiente, uma sociedade com mais distribuição de renda e menos desigual, finalmente, a oportunidade de uma sociedade mais justa.   

 

Ricardo Lobato é benfeitor das obras sociais salesianas. É licenciado em Ciências Sociais e bacharel em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB); mestre em Economia pela Universidade de Brasília (UnB); oficial da Reserva do Exército Brasileiro; é também professor e palestrante. Atualmente é analista chefe de risco político da “EQUILIBRIUM – Consultoria, Assessoria e Pesquisa”.

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Última modificação em Quarta, 03 Junho 2020 14:16

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O lado esquecido: reinventando a(s) sociedade(s)

Segunda, 20 Abril 2020 11:25 Escrito por  Ricardo Lobato
A atual pandemia causada pelo coronavírus (COVID-19) é, sem sombra de dúvida, o maior desafio enfrentado pela humanidade desde o fim da II Guerra Mundial. Enquanto entre 1939 e 1945 o inimigo era a ideologia nazifascista, a atual crise tem como oponente um inimigo invisível, mas igualmente letal. Apesar de todo o perigo causado por esta criatura microscópica, os desafios a serem enfrentados são muito maiores do que apenas a emergência sanitária. A crise atual evidencia um problema prévio, um lado esquecido, uma tribulação que envolve elementos político-econômico-sociais e gera questionamentos quanto ao modelo de crescimento que vinha sendo implantado, não apenas no mundo ocidental, mas também no oriente, onde se iniciou a atual situação.  

A emergência sanitária que, por ora, exige como única medida eficiente o isolamento social, alterou a dinâmica de sociedades inteiras. Quem há menos de três meses, na virada do ano, podia imaginar que várias cidades ficariam com suas ruas vazias? De Pequim a Paris, de Nova Iorque a São Paulo, de Roma a Moscou, a circulação de pessoas foi interrompida. O fato de os indivíduos terem de se isolar em suas casas, de modo a impedir que o vírus se alastre pelo contato social, expôs um paradigma da sociedade moderna, expôs falhas do sistema vigente, que antes as pessoas ou desconheciam, ou sabiam, mas tinham ressalvas em aceitar. Expôs um lado aparentemente esquecido da sociedade: a desigualdade.

 

Neste cenário, muitos dos discursos de governantes, economistas, jornalistas e das falas de formadores de opinião e tomadores de decisão no geral, têm por mote o trade off entre vidas e empregos. Apesar de muitas atividades essenciais continuarem, grande parte da economia ou parou, ou foi posta em home office. O isolamento social e a recomendação – em alguns casos a obrigação – de ficar em casa para evitar que a doença se espalhe, levantaram preocupações antes esquecidas, ou simplesmente deixadas de lado.

 

Quando um morador de rua em Londres recebeu a ordem de um policial de ir para casa, este respondeu: “Que casa?”. Cenas como esta levantaram a preocupação do que fazer com os mais necessitados. Pessoas em situação de rua não são uma exclusividade de países em desenvolvimento, como o Brasil. Além de Londres, grandes cidades do mundo inteiro, principalmente nos países desenvolvidos, contam com indivíduos em situação de pobreza extrema. Em Nova Iorque passam de 50.000. Muitos são a herança maldita da crise do subprime de 2008. Em tempos de COVID-19 a sociedade resolveu olhar para essas pessoas, mas não apenas para elas, também para as favelas e comunidades, pessoas que vivem em grandes centros urbanos em situações precárias. Seja nas palafitas do Norte do país, ou nos barracos das cidades do centro-sul. Se é difícil conter a doença nos centros das cidades, ao atingir as comunidades seria o que está sendo chamado de “eugenia social”.

 

Também há discursos no sentido de apontar os problemas do transporte público. Com a recomendação de manter um mínimo de dois metros de distância para evitar o contágio, resolveram pensar nos pontos de ônibus, nas rodoviárias e nas estações de metrô lotadas que, em horário de pico, causam tanto desconforto aos trabalhadores, já cansados depois de uma jornada árdua. Também os trabalhadores informais passaram a ser fonte de preocupação. Milhões de pessoas que, impossibilitadas de sair de casa, são privadas de, muitas vezes, seu único sustento e de suas famílias.

 

É bom que em momentos de crise e de extrema necessidade, os olhos se voltem para aqueles que mais precisam. Mas a pergunta a ser feita é: por que só agora? Ao contrário do coronavírus, esse não é um fenômeno que começou nas últimas semanas. Precisou de uma pandemia para que esta triste realidade viesse à tona. No mundo inteiro estão sendo tomadas medidas de modo a mitigar essa situação. Para além dos indivíduos, os Estados começam a olhar por seus cidadãos mais necessitados.

 

Assim como o fim da II Guerra Mundial trouxe, depois de tanto sofrimento – e a despeito da idiossincrasia da Guerra Fria – uma era de prosperidade econômica e social, agora, novamente, uma nova era se desenha. O que será do mundo depois do COVID-19 não é possível afirmar. Entretanto, a paralisação mostra que, além de olharmos uns para os outros, as cidades estão mais limpas e o ar menos poluído. Com todos os seus males, será a crise de hoje a solução para a já existente (e persistente) crise do descaso? As tribulações de hoje podem ser a oportunidade de se construir uma sociedade mais preocupada com o próximo e com o meio ambiente, uma sociedade com mais distribuição de renda e menos desigual, finalmente, a oportunidade de uma sociedade mais justa.   

 

Ricardo Lobato é benfeitor das obras sociais salesianas. É licenciado em Ciências Sociais e bacharel em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB); mestre em Economia pela Universidade de Brasília (UnB); oficial da Reserva do Exército Brasileiro; é também professor e palestrante. Atualmente é analista chefe de risco político da “EQUILIBRIUM – Consultoria, Assessoria e Pesquisa”.

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