Religião e superação da violência

Terça, 31 Julho 2018 22:09 Escrito por  Pe. Marcos Sandrini, SDB
Religião e superação da violência iStock.com
A Campanha da Fraternidade 2018 foca a superação da violência. Já escrevi um texto sobre o tema, suas raízes e folhas. Agora, vamos refletir sobre o papel da religião na superação da violência. É claro que o ponto de vista é cristão, porque minha formação e vivência são cristãs.  

Toda religião tem algo ou alguém fascinante. As pessoas precisam de fascínio, de encantamento. Deus é fascinante. Após seu encontro com Jesus, André avistou seu irmão Pedro e disse: “Encontramos o Messias” (Jo 1,41), partilhando com ele um encantamento. O encontro profundo entre as pessoas começa com a sedução e continua no convencimento. É preciso primeiro seduzir para depois convencer. “Encontramos o Messias” mudou completamente a vida de André e de Pedro.

 

A religião é fascinante porque não pega apenas uma parte da pessoa, mas a pessoa inteira: física, psicológica, social, cultural, econômica, política... Tudo passa pelo seu crivo. Ela é fascinante, mas, ao mesmo tempo, é tremenda porque pode nos levar a fanatismos profundos.

 

O primeiro aspecto tremendo da religião é olhar a pessoa apenas numa dimensão. Isso produziu na história da humanidade dores e sofrimentos terríveis. Na Idade Média houve muita violência, sangue e morte. Isso é atribuído à religião. E é verdade, em parte. Mas qual é o problema? É justamente a unidimensionalidade. O problema não é a religião, mas SÓ a religião. Religião demais, religião sozinha faz mal, muito mal. O mesmo se diga da razão. A razão é algo de fascinante, mas se transforma numa realidade tremenda quando unidimensional. Só razão mata. O mesmo com a emoção. Emoção é necessária na vida. Precisamos de pessoas e situações emocionantes. No entanto, só emoção também mata. Há os crimes passionais.

 

Religião unidimensional

Quando a pessoa se preocupa apenas com uma de suas dimensões, esquecendo de que sua vida é complexa, ela é atingida por doenças muito sérias. Indico três, que na realidade são uma só: fundamentalismo, fanatismo e dogmatismo.

 

Toda pessoa durante a vida adquire algumas convicções próprias que vão constituindo o fundamento de sua vida. Há valores que as pessoas não deixam de forma alguma. Do ponto de vista religioso, para cada cristão, o fundamento de sua vida é Jesus Cristo. No entanto, existem outras pessoas dentro desse mundo multicultural e multirreligioso que têm outros fundamentos. A unidimensionalidade brota quando eu não aceito essa realidade e quero impor meu fundamento para os outros. Então, algo que é bom se transforma em algo tremendo.

 

O Ocidente é tão fundamentalista quanto o Oriente. Nossa cultura é branca, masculina, adulta, cristã e ocidental. Daí provêm o racismo, porque não se aceitam outras etnias; o machismo, porque não se aceita outro gênero; a negação da criança diante do adulto. Para muita gente, tudo que é oriental é exótico. Pior ainda, veem-se os orientais mulçumanos como sendo todos terroristas. No fundo, eu sou bom e os outros é que são maus.

 

Esta é a origem da violência. Se não atacarmos a unidimensionalidade com urgência, nunca acabaremos com ela. O outro existe e precisa ser respeitado. Ele também tem fundamento, que pode ser diferente do meu.

 

Converter-se religiosamente

O que existe de tremendo nas religiões? É quando elas se tornam um absoluto na vida das pessoas que não conseguem ver nem outras dimensões de sua pessoa e nem outras formas de manifestação religiosa que não a sua.

 

José Saramago escreveu um romance chamado Caim. Como todo romance, navega, voa e viaja livremente. Na realidade este livro é um grito contra a violência que há em diversas passagens bíblicas. Por exemplo, na narração do dilúvio, na quase matança de Isaac filho de Abraão, na destruição de Sodoma e Gomorra, no cerco e na matança do povo de Jericó. Esse lado violento e fundamentalista é o tremendo que se bate com o fascinante que é o lado pacífico da religião. Muitas pessoas não são capazes de ver isso em sua religião e combatê-lo.

 

Jesus Cristo foi uma pessoa de paz. Em muitas ocasiões foi tentado a assumir posturas violentas e não o fez. Preferiu assumir atitudes pacíficas e sofrer a violência do que praticá-la. Não matou, não violentou, não torturou. Pelo contrário, foi violentado, torturado e morto.

 

Superação da violência

O quinto mandamento da lei de Deus é “não matar”. Este é um mandamento absoluto. No entanto, nós o relativizamos de forma muito leviana. Por isso, para os cristãos há assuntos que não são pacíficos. Cito alguns: a defesa da pena de morte, o uso de arma de fogo, a legítima defesa, a guerra justa, a justiça pelas próprias mãos e tantos outros... O cristão tem o dever de lutar pela superação da violência. Para tanto, precisa colocar em ação seus talentos, inteligência e recursos para evitar a violência e promover a paz. Há formas adequadas para isto. Vamos citar três.

 

A primeira é a luta contra as drogas. Os magistrados, os delegados, os policiais cristãos têm o dever de não proteger os que produzem e distribuem as drogas. O usual é criminalizar os pobres, os pequenos usuários, e ocultar os barões das drogas.

 

Outra é encarar os presídios e os presidiários com outro olhar. A forma habitual de repressão violenta contra os presidiários, muitas vezes encarcerados sem o devido processo, só causa mais revolta. Há novas formas de administrar os presídios. Há o método APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – já presente em alguns estados brasileiros. Nele, os condenados a penas privativas de liberdade são recuperados e reintegrados ao convívio social. Os próprios presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica. Trata-se de um método de eficácia comprovada, que reduz custos e possibilita menor emprego de efetivo. Para ter uma ideia, a média brasileira de reincidência no modelo tradicional é de cerca de 70%, enquanto nas APACs fica em torno de 10%.

 

Finalmente, existe uma nova forma de abordar a convivência social na linha da justiça restaurativa, assumindo posturas mais humanas, fazendo com que os agressores assumam suas responsabilidades e as vítimas sejam capazes de reconciliação e perdão. Isso restaurará a pessoa e o tecido social. As escolas, paróquias e obras sociais muito se beneficiariam aprofundando e vivendo a justiça restaurativa.

 

Conclusão

Para todos fica o desafio de encontrar o sentido da vida. O bem-estar é muito mais que sua perspectiva econômica. Bem-estar abrange também a ética nas relações, o cuidado dos mais fracos. A grandeza de uma nação se mede pela capacidade que tem de cuidar de seus irmãos mais necessitados.

 

O seguimento de Jesus continua sendo um apelo fascinante para os cristãos. O que importa e interessa em uma religião não são a exatidão de seus dogmas e a observância de seus rituais, mas o bem que faz, o sofrimento que alivia, a felicidade que proporciona às pessoas e a esperança que dá a seus fiéis, para que sempre encontrem o sentido da vida que proporciona alento e forças para seguir adiante na tarefa que corresponde a cada um neste mundo.

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Última modificação em Sábado, 14 Março 2020 13:29

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Religião e superação da violência

Terça, 31 Julho 2018 22:09 Escrito por  Pe. Marcos Sandrini, SDB
Religião e superação da violência iStock.com
A Campanha da Fraternidade 2018 foca a superação da violência. Já escrevi um texto sobre o tema, suas raízes e folhas. Agora, vamos refletir sobre o papel da religião na superação da violência. É claro que o ponto de vista é cristão, porque minha formação e vivência são cristãs.  

Toda religião tem algo ou alguém fascinante. As pessoas precisam de fascínio, de encantamento. Deus é fascinante. Após seu encontro com Jesus, André avistou seu irmão Pedro e disse: “Encontramos o Messias” (Jo 1,41), partilhando com ele um encantamento. O encontro profundo entre as pessoas começa com a sedução e continua no convencimento. É preciso primeiro seduzir para depois convencer. “Encontramos o Messias” mudou completamente a vida de André e de Pedro.

 

A religião é fascinante porque não pega apenas uma parte da pessoa, mas a pessoa inteira: física, psicológica, social, cultural, econômica, política... Tudo passa pelo seu crivo. Ela é fascinante, mas, ao mesmo tempo, é tremenda porque pode nos levar a fanatismos profundos.

 

O primeiro aspecto tremendo da religião é olhar a pessoa apenas numa dimensão. Isso produziu na história da humanidade dores e sofrimentos terríveis. Na Idade Média houve muita violência, sangue e morte. Isso é atribuído à religião. E é verdade, em parte. Mas qual é o problema? É justamente a unidimensionalidade. O problema não é a religião, mas SÓ a religião. Religião demais, religião sozinha faz mal, muito mal. O mesmo se diga da razão. A razão é algo de fascinante, mas se transforma numa realidade tremenda quando unidimensional. Só razão mata. O mesmo com a emoção. Emoção é necessária na vida. Precisamos de pessoas e situações emocionantes. No entanto, só emoção também mata. Há os crimes passionais.

 

Religião unidimensional

Quando a pessoa se preocupa apenas com uma de suas dimensões, esquecendo de que sua vida é complexa, ela é atingida por doenças muito sérias. Indico três, que na realidade são uma só: fundamentalismo, fanatismo e dogmatismo.

 

Toda pessoa durante a vida adquire algumas convicções próprias que vão constituindo o fundamento de sua vida. Há valores que as pessoas não deixam de forma alguma. Do ponto de vista religioso, para cada cristão, o fundamento de sua vida é Jesus Cristo. No entanto, existem outras pessoas dentro desse mundo multicultural e multirreligioso que têm outros fundamentos. A unidimensionalidade brota quando eu não aceito essa realidade e quero impor meu fundamento para os outros. Então, algo que é bom se transforma em algo tremendo.

 

O Ocidente é tão fundamentalista quanto o Oriente. Nossa cultura é branca, masculina, adulta, cristã e ocidental. Daí provêm o racismo, porque não se aceitam outras etnias; o machismo, porque não se aceita outro gênero; a negação da criança diante do adulto. Para muita gente, tudo que é oriental é exótico. Pior ainda, veem-se os orientais mulçumanos como sendo todos terroristas. No fundo, eu sou bom e os outros é que são maus.

 

Esta é a origem da violência. Se não atacarmos a unidimensionalidade com urgência, nunca acabaremos com ela. O outro existe e precisa ser respeitado. Ele também tem fundamento, que pode ser diferente do meu.

 

Converter-se religiosamente

O que existe de tremendo nas religiões? É quando elas se tornam um absoluto na vida das pessoas que não conseguem ver nem outras dimensões de sua pessoa e nem outras formas de manifestação religiosa que não a sua.

 

José Saramago escreveu um romance chamado Caim. Como todo romance, navega, voa e viaja livremente. Na realidade este livro é um grito contra a violência que há em diversas passagens bíblicas. Por exemplo, na narração do dilúvio, na quase matança de Isaac filho de Abraão, na destruição de Sodoma e Gomorra, no cerco e na matança do povo de Jericó. Esse lado violento e fundamentalista é o tremendo que se bate com o fascinante que é o lado pacífico da religião. Muitas pessoas não são capazes de ver isso em sua religião e combatê-lo.

 

Jesus Cristo foi uma pessoa de paz. Em muitas ocasiões foi tentado a assumir posturas violentas e não o fez. Preferiu assumir atitudes pacíficas e sofrer a violência do que praticá-la. Não matou, não violentou, não torturou. Pelo contrário, foi violentado, torturado e morto.

 

Superação da violência

O quinto mandamento da lei de Deus é “não matar”. Este é um mandamento absoluto. No entanto, nós o relativizamos de forma muito leviana. Por isso, para os cristãos há assuntos que não são pacíficos. Cito alguns: a defesa da pena de morte, o uso de arma de fogo, a legítima defesa, a guerra justa, a justiça pelas próprias mãos e tantos outros... O cristão tem o dever de lutar pela superação da violência. Para tanto, precisa colocar em ação seus talentos, inteligência e recursos para evitar a violência e promover a paz. Há formas adequadas para isto. Vamos citar três.

 

A primeira é a luta contra as drogas. Os magistrados, os delegados, os policiais cristãos têm o dever de não proteger os que produzem e distribuem as drogas. O usual é criminalizar os pobres, os pequenos usuários, e ocultar os barões das drogas.

 

Outra é encarar os presídios e os presidiários com outro olhar. A forma habitual de repressão violenta contra os presidiários, muitas vezes encarcerados sem o devido processo, só causa mais revolta. Há novas formas de administrar os presídios. Há o método APAC - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – já presente em alguns estados brasileiros. Nele, os condenados a penas privativas de liberdade são recuperados e reintegrados ao convívio social. Os próprios presos são corresponsáveis pela sua recuperação e contam com assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica. Trata-se de um método de eficácia comprovada, que reduz custos e possibilita menor emprego de efetivo. Para ter uma ideia, a média brasileira de reincidência no modelo tradicional é de cerca de 70%, enquanto nas APACs fica em torno de 10%.

 

Finalmente, existe uma nova forma de abordar a convivência social na linha da justiça restaurativa, assumindo posturas mais humanas, fazendo com que os agressores assumam suas responsabilidades e as vítimas sejam capazes de reconciliação e perdão. Isso restaurará a pessoa e o tecido social. As escolas, paróquias e obras sociais muito se beneficiariam aprofundando e vivendo a justiça restaurativa.

 

Conclusão

Para todos fica o desafio de encontrar o sentido da vida. O bem-estar é muito mais que sua perspectiva econômica. Bem-estar abrange também a ética nas relações, o cuidado dos mais fracos. A grandeza de uma nação se mede pela capacidade que tem de cuidar de seus irmãos mais necessitados.

 

O seguimento de Jesus continua sendo um apelo fascinante para os cristãos. O que importa e interessa em uma religião não são a exatidão de seus dogmas e a observância de seus rituais, mas o bem que faz, o sofrimento que alivia, a felicidade que proporciona às pessoas e a esperança que dá a seus fiéis, para que sempre encontrem o sentido da vida que proporciona alento e forças para seguir adiante na tarefa que corresponde a cada um neste mundo.

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