Walelasoetxeige Paiter Suruí, 17 anos, acaba de protagonizar um feito inédito no estado de Rondônia. Ela é a primeira estudante indígena a ingressar em uma faculdade federal antes de concluir o ensino médio. Aluna do Colégio Dom Bosco de Porto Velho desde o 6º ano, ela escolheu o curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia e não utilizou o sistema de cotas, conquistando a vaga por meio do ótimo desempenho na prova do ENEM. Por coincidência, foi na Justiça que a aluna confirmou o direito de ser universitária, já que não havia ainda concluído o ensino médio no ato da matrícula. Uma liminar concedida pelo juiz Dimis da Costa Braga, do Tribunal de Justiça do Estado, possibilitou a matrícula, e declarou que “a Constituição Federal garante o respeito à capacidade intelectual dos cidadãos”.
Walela se diz muito feliz com a conquista e grata à escola da RSE pela formação recebida. “Estou há bastante tempo na escola. O colégio tem esse foco, de levar os alunos a passarem no vestibular. E nos ajuda muito, com aulões, tirando dúvidas, nas aulas de redação”, afirma. O sentimento de gratidão também está presente quando ela recorda dos educadores: “Mais do que professores, eles são nossos amigos. Vou lembrar de todos”.
Quando chegou à escola, há 6 anos, Walelasoetxeige diz ter notado uma atmosfera diferente, uma preocupação não só com a ciência, mas também com a ciência do coração: os valores, a religiosidade e as boas ações. Para ela, esse é o grande diferencial de sua escola. “Gosto do Dom Bosco por causa disso. A escola se preocupa não só com a formação do ensino médio e a formação profissional, mas com a formação do ser humano, com a cidadania. Quando aconteceu a enchente em Porto Velho, os salesianos ajudaram a comunidade, abrigaram no CESAM quem ficou desalojado. É isso. A gente aprende a ajudar as pessoas”, conta a aluna, entusiasmada.
Padre Gilberto Theodoro Cucas, diretor do Colégio Dom Bosco, se lembra desse momento e acrescenta que Walela foi uma das voluntárias na ação. “Ela foi como voluntária! Nós tivemos umas 300 famílias abrigadas na obra social que fica a 3 minutos de carro aqui do colégio. E ela foi como voluntária para brincar com as crianças. Por iniciativa dela. Fiquei muito feliz com a entrada dela na universidade, com essa conquista. A Walela é aquela pessoa que conversa com todo mundo, mas que é simples, solidária”, revela.
O diretor salesiano concorda que uma formação integral é algo preponderante na preparação dos alunos para o vestibular e para a vida. Padre Gilberto acredita na importância de dialogar sempre com os alunos e de buscar o equilíbrio entre as dimensões psíquica, religiosa e intelectual do estudante.
Agora como ex-aluna, Walelasoetxeige já sente saudades dos colegas e da escola, mas afirma que não deixará nunca de fazer parte da comunidade, de estar inserida e ativa no cotidiano da escola. “Vejo muito, nos jogos e eventos do colégio, que os alunos que já se formaram sempre participam. Quero continuar também na escola. Participar da feira de ciências, do arraial do Dom Bosco, que é uma das festas mais bonitas da cidade, do sarau. Quero estar presente, sempre que possível”, projeta.
Formação e cidadania para os povos indígenas
Além da alegria de ser parte da família salesiana, um grande orgulho de Walela é integrar uma outra família: o povo indígena Suruí. Os Suruí vivem nos estados de Rondônia e Mato Grosso e tiveram seu primeiro contato com o homem branco há cerca de 40 anos. Todo Suruí, como Walela, leva na grafia de seu nome o termo Paiter, que significa “gente de verdade, nós mesmos”.
Filha da ativista Ivaneide Cardozo e de Almir Suruí, uma das principais lideranças indígenas do país, ela leva no sangue o amor pelo seu povo, a luta pela preservação ambiental e pelos direitos indígenas. Buscando em Porto Velho sua formação, Walela não deixa de estar presente com boa frequência na aldeia, localizada na Terra Indígena Sete de Setembro, em Cacoal, RO. “Eles são a minha família. Vamos à aldeia sempre que podemos. Apesar de morarmos distantes, pertenço à minha aldeia. A minha conquista é uma conquista para a minha tribo. É uma esperança para nós”, ressalta a estudante.
A opção pelo curso de Direito vem do interesse pela área e pela leitura, mas traz em sua origem também um objetivo de “aprender para conhecer”, e conhecer para ajudar a sociedade, especialmente o povo Suruí. “Quando você aprende Direito, você aprende a lutar pelos seus direitos. Nós, indígenas, ainda sofremos muito preconceito. Então é importante nos capacitarmos para ajudar a própria comunidade e não depender só de quem está fora dela. A aldeia é uma situação diferente, é difícil chegar à escolaridade superior, ou acima do 6º ano. Então às vezes faltam médicos e outros profissionais entre nós que poderiam ajudar a aldeia quando necessário. Acho que é importante irmos além por isso. Para ajudar a própria comunidade, para sobreviver, nos adequarmos, mas sempre mantendo a nossa cultura”, afirma.
A opinião da aluna vai ao encontro da visão de quem está de fora da aldeia, mas conhece o atual momento de ressignificação histórica dos povos indígenas no Brasil, como a editora Ariete Nasulicz, responsável pelo material didático de História da Rede: “Por meio das Leis 10 639 e 11 645, de políticas afirmativas em relação aos africanos, afrodescendentes e povos indígenas, podemos assegurar uma mudança profunda na forma como nós brasileiros vemos a nossa história e a nossa identidade, sempre marcada por uma visão europeia”.
Para a editora, é preciso romper com a ideia de que o indígena é um ser exótico, que usa cocar, vive isolado, integrado à natureza. “O indígena é um ser social e o fato de ele usar celular, calça jeans e tênis não significa que ele deixou de ser indígena. Ele tem direito ao acesso aos bens de consumo e tecnologia tanto quanto os outros brasileiros. É cada vez mais esperado que indígenas (da aldeia ou não) interajam e se insiram nos projetos sociais, científicos e culturais que existem fora da aldeia”, considera Ariete. “No caso da aluna, ela rompe com a ideia estereotipada que se fez desses povos por muito tempo. Ela não deixou de ser indígena por frequentar a escola e entrar na universidade. Não é necessário abrir mão de sua identidade para contribuir com a sociedade”, destaca.
Acreditar nos jovens, fazer o jovem acreditar em si
Acreditar e investir nos sonhos e objetivos de jovens como Walela é algo que está na essência das escolas da Rede, dos professores, das irmãs FMA e padres SDB, no Projeto Educativo Pastoral que se baseia nas ideias de Dom Bosco. Padre Gilberto pensa que a identificação dos jovens com a educação salesiana vem destes valores, colocados em prática todos os dias nas escolas da Rede. “Eu diria que o grande diferencial da escola salesiana é a prática – não a teoria – do Sistema Preventivo. Porque é que os alunos gostam do colégio? Pela prática que temos no pátio, na igreja, dentro da sala de aula, nos corredores. No cotidiano, recebem aquele amor e dedicação, aquela atenção. Ouvir as ideias dos alunos, dialogar, entender o jovem de hoje: essa é a prática do sistema que Dom Bosco ofereceu para nós salesianos. Viver o cotidiano do jovem dentro da escola”. Segundo o diretor, incentivar o talento de uma jovem estudiosa e animada como Walelasoetxeige, crer em sua capacidade de mudança, é algo que faz parte da missão do educador salesiano: “Temos de potencializar o que o jovem tem de bom”.
Na entrevista à RSE, Walela conclui agradecendo a todos do colégio e da Rede pelo bem que ela considera o mais importante para um ser humano, o aprendizado, e deixa uma mensagem aos jovens: “O conhecimento é a coisa mais importante que podemos ter, pois não pode ser tomado. Podem tomar suas terras, podem tomar suas casas, mas o conhecimento e a sabedoria ninguém pode lhe tirar. Então temos de lutar para ter conhecimento, e não esquecer de ser jovem, de fazer tudo com a alegria do jovem.”