Desde 2014, o mundo se atém, atônito, ao número recorde de pessoas que se lançaram à própria sorte fugindo de seus lares e que hoje vivem o status de “refugiados”, motivadas por conflitos e perseguições políticas. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), o mundo contabiliza hoje quase 60 milhões de pessoas nessas condições, soma bem superior à vista durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1940.
As causas por trás de milhares de fugas são as mesmas, mas assumem novos contornos com a guerra na Síria, que infelizmente amplia o mapa mundial das áreas de conflito e engrossa essa contabilização dramática.
A Família Salesiana tem relatos de trabalho intenso em cada ponto do planeta onde há um conflito ou tragédia natural, por meio do trabalho das missões, calcado no amparo a crianças e jovens em situação de risco.
No particular
Da República Democrática do Congo, uma das regiões mais tensas do continente africano, é que vem Omana Ngangu, refugiado que vive em São Paulo, SP, há cerca de dois anos. Na sua rota de fuga, ocorrida há três anos, ele passou por França, Uganda, Quênia, Paraguai e Argentina. Casado e pai de cinco filhos, o professor de Letras teve de fugir de seu país após sofrer um atentado promovido por rebeldes. A principal causa da perseguição foi sua militância em favor de mulheres e crianças. Ele mantinha uma organização não governamental (ONG) para combater a violência sexual contra as mulheres e, também, contra o aliciamento de crianças e jovens pelas milícias locais. Bandeira árdua em um contexto local onde 71% da população estão abaixo da linha de pobreza e onde a violação dos direitos humanos é de tal envergadura que é lá que está a maior base de trabalho da ONU.
A presença salesiana naquele país também é intensa. Ali atuam cerca de 230 coirmãos, dos quais mais da metade em formação inicial. “São 27 comunidades, as quais, entretanto, animam e dirigem o dobro de obras. É, ao mesmo tempo, uma inspetoria missionária: já pôs 15 salesianos à disposição do Dicastério para as Missões”, segundo relatou o padre Jean-Claude Ngoy, superior da Inspetoria da África Central (AFC), durante o Capítulo Geral 27 dos salesianos, ocorrido em 2014.
Em seu depoimento, o padre salesiano relatara que o país registra dimensões continentais e, na mesma proporção, problemas políticos e culturais muito semelhantes a seus vizinhos, com milícias, grupos rebeldes e confrontos políticos que têm motivado pessoas como Omana a se lançarem ao mundo em busca de um lugar onde haja paz.
Seu país é um calvário
O Congo, país de origem de Omana, dispõe de grandes riquezas minerais, como diamantes, ouro, cobre, cobalto e petróleo bruto, dentre outros, mas que se concentram nas mãos de apenas 5% da população. Há quase 20 anos, uma guerra civil já fez mais de seis milhões de mortos e desaparecidos, batendo recordes também em comparação aos números da Segunda Guerra Mundial.
O país, apesar de declarar-se democrático, apresenta um dos piores índices no ranking da democracia estabelecido pela ONU, ocupando o 155º lugar dentre 167 países. Nesse contexto foi que Omana passou a ser perseguido e há três anos sofreu um atentado. Homens armados invadiram sua casa, levaram-no à força para uma região afastada e atiraram nele. Na emboscada, outros não tiveram a mesma sorte de sobreviver. Ele foi encontrado desacordado, foi amparado e conseguiu fugir para Uganda, deixando sua família e sua história para trás. Sua filha mais velha, que não sabia da emboscada que vitimou sua família, foi atacada e morta pelos rebeldes, ao voltar da missa naquela noite. A família hoje vive em Nairobi, no Quênia, e ele, desde que chegou ao Brasil, trabalha intensamente para enviar recursos de subsistência para a mulher e os filhos, dando aulas de francês e de cultura e culinária africana, já que o nosso país não reconhece seu diploma de professor.
Natal sem a família
“Eu protestei muito contra esse sistema que vitima as mulheres, que não têm direitos e que são expostas a todo tipo de violência, e crianças, que são exploradas pelas milícias rebeldes. Eu não podia aceitar isso porque penso no que será do nosso futuro, se fazemos isso com as crianças?!”, exclama.
Mas seus olhos brilham de entusiasmo ao falar do Brasil e na expectativa de poder trazer sua família para cá. “O Brasil pode modificar essa cultura que vemos nos países africanos e no meu país. Eu entendo que os rebeldes que me feriram e mataram minha filha são frutos de um sistema, de uma cultura. Por isso não tenho mágoa deles. Precisamos lutar para que esse sistema mude e que isso não seja mais aceito. E acho que o Brasil pode ajudar nesse caminho!”, afirma, demonstrando esperança e fé em um futuro melhor para ele e para seu povo
Este Natal de Omana Ngangu será um pouco diferente dos três últimos. Neste momento, ele já consegue ter esperanças de, em futuro próximo, poder trazer a mulher e os filhos novamente para o seu convívio. Há pouco tempo ele recebeu do governo brasileiro o status de “refugiado”, o que faz toda a diferença, porque agora ele ‘existe’ no contexto da cidadania. “E eu me sinto muito feliz de estar agora vivendo no Brasil. Aqui estão muitos descendentes dos meus ancestrais que ajudaram a construir esse país!”, declara entusiasmado, com um português carregado de sotaque francês, sua língua nativa.
A cruz por trás do refúgio
Por trás de todo refugiado ou migrante há uma história permeada de sofrimento, mas a reflexão dessa realidade veio à tona nos últimos meses, graças aos dramas expostos por esta onda migratória pela qual o mundo vem passando, acentuada não só pelos conflitos no continente africano, mas também pela guerra na Síria, com milhares de refugiados tentando chegar à Europa. Tal movimento tem contabilizado centenas de mortes dentre os apátridas.
Este cenário mundial fez com que o Papa Francisco, em setembro de 2015, pronunciasse um apelo a toda instituição católica na Europa, para que abrisse portas ao acolhimento dessas pessoas em busca de refúgio. Motivados pelo apelo do Pontífice, o reitor-mor dos Salesianos, padre Ángel Fernández Artime, e a superiora geral das Filhas de Maria Auxiliadora, madre Yvonne Reungoat, dirigiram um apelo evocando a cooperação de toda a Família Salesiana em favor dos migrantes e refugiados no mundo.
O apelo dos superiores da Congregação foi atendido em diversas obras salesianas ao redor do mundo. Na Europa, várias casas se abriram à acolhida de refugiados, enquanto nos países em conflito a ação salesiana continua levando apoio aos que sofrem com as guerras.