“Navegar é preciso”, já dizia Fernando Pessoa, que completava: “Viver não é preciso”. Quase sempre, na disciplina de Língua Portuguesa, somos convidados a refletir sobre o que queria dizer o poeta português. Há os que afirmam que ele referia-se às navegações portuguesas, o que é bem aceito no meio acadêmico; mas, dentre outras interpretações, há uma em especial em que quero me debruçar.
No século I a.C., o império romano se expandia econômica e territorialmente, e as grandes navegações passaram a ser uma realidade também para aquele povo, que logo conquistou terrenos ultramarinos. O general Pompeu, por volta dos anos 70 a.C., foi incumbido de transportar trigo para as províncias romanas de além-mar. Ocorre que, naquele tempo, as limitações tecnológicas eram tamanhas, e navegar atravessando grandes distâncias era um risco. Os soldados e tripulantes enfrentavam um dilema: salvar as colônias de Roma da grave crise de abastecimento, ou se manter em segurança nos seus lares. Nesse contexto, Pompeu teria proferido a célebre frase, supostamente parafraseada por Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
As mudanças na educação
Recentemente, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 746/2016, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e estabelece a nova Base Nacional Comum Curricular, alterando profundamente o modelo educacional brasileiro.
Trazendo aquela segunda interpretação de Fernando Pessoa para a realidade do modelo educacional brasileiro, vivemos igualmente um grande dilema: se, de um lado, precisamos reformular o currículo escolar, que é ultrapassado e não atende à moderna demanda de jovens pensadores e conectados; de outro, sabemos que precisamos fazer isso com parcimônia, para não atrapalhar ainda mais um processo lento e defasado, agravando desigualdades existentes e gritantes. Ou seja, sabemos que é necessário reformar, dentre outras séries escolares, o ensino médio, mas a qual custo?
Para falar a respeito do tema de reforma educacional precisamos, quase que necessariamente, falar da recente proposta do Governo Federal e entender exatamente o que nos foi proposto, em sua nova estrutura legal, para, então, compreender os reflexos de tais alterações e saber “os custos” que nos serão cobrados.
A proposta governamental
As alegações governistas são no sentido de que os índices escolares, no Brasil, estão estagnados e representam um desempenho fraco quando comparados a outros níveis semelhantes no cenário internacional. Diga-se de passagem, com razão as leituras feitas pelo governo. Para tentar solucionar essa problemática, propõe-nos alterações nas leis que regem a educação no País, mudando a estrutura do ensino médio em seis pontos principais.
Primeiro, o aumento na carga horária escolar; segundo, a alteração das disciplinas obrigatórias; terceiro, a instituição do ensino técnico como parte integrante do ensino médio regular; quarto ponto, a instituição do Inglês como língua estrangeira obrigatória; quinto, o fim da exigência de diplomas específicos para professores; por fim, o agrupamento dos conteúdos não mais por disciplinas, mas por grupos de competências e habilidades.
Desde o começo, a matéria proposta é alvo de controvérsias. Para ter uma ideia, desde que o texto foi apresentado ao Parlamento mais de 500 emendas já foram apresentadas; praticamente, uma emenda por parlamentar, ou 14 emendas por item constante na proposta. E não poderia ser diferente. Afinal, educação é um tema que interessa a toda a sociedade.
Necessidade de um debate amplo
Justamente por isso, debater os tópicos da reforma junto à sociedade é um dever do Estado; e nisso já reside a primeira crítica: a forma como o governo pretende reformar a educação dá-se por meio de Medida Provisória (MP).
Diferentemente de um Projeto de Lei, que nasce da vontade popular, a MP nasce da vontade de uma única pessoa, no caso, o Presidente da República. A diferença é que, atualmente, no regime democrático, a MP tem validade, ou seja, não dura eternamente; vale por 90 dias e pode ser derrubada a qualquer tempo pelo Parlamento, se não a ratificar.
Mesmo assim, em um regime essencialmente democrático, como a República brasileira, é salutar e essencial que propostas dessa envergadura, que atingem diretamente a vida de milhares de jovens e suas famílias, passem por ampla discussão em todas as esferas da sociedade antes de ter validade, e não que sejam impostam, como essa proposta foi.
Acompanhado a isso, sabemos ser evidente que o método das salas de aula precisa mudar, se atualizar, estar atento à juventude moderna que nasce naturalmente conectada, sendo certo que cada estudante encontra mais facilidade em uma disciplina do que em outra. Porém, dividir os jovens, desde o ensino médio, entre competências teóricas e práticas, como será feito com a implementação do ensino técnico obrigatório, poderá agravar estruturas de desigualdades sociais.
Desigualdades
Se de um lado temos (poucos) jovens com famílias abastadas ou com segurança financeira suficiente para sustentá-los, de outro temos (muitos) jovens em situação de vulnerabilidade social. O primeiro grupo de jovens pode, com tranquilidade, desfrutar de uma educação de qualidade aprofundada, visando alcançar o ensino superior e, assim, capacitação teórica suficiente para cargos e salários maiores em nossa sociedade atual. O segundo grupo de estudantes precisa de uma resposta rápida da educação; que ela lhe sirva como instrumento imediato de colocação no mercado de trabalho, para trabalhos que garantam minimamente sua subsistência.
Ora, em se dividindo, desde o ensino médio, as grades disciplinares entre teóricas e técnicas, é quase que evidente a decisão do segundo grupo de jovens, maioria dos estudantes, que depende quase com exclusividade de escolas públicas. Optarão por um caminho que lhes insira quase que imediatamente no mercado de trabalho, tirando toda e qualquer possibilidade de acesso ao ensino superior.
Pronto. Eis que a proposta pode agravar a situação de desigualdade social já existente no país.
Os educadores
E por último, mas não menos importante, devemos destacar que, com o proposto aumento da carga horária nas escolas, será igualmente necessário um aumento na carga horária de educadores, que devem ser melhor remunerados, além da necessidade de se contratar mais profissionais. Em se tratando da esfera pública, ou seja, quase 90% da educação do país, esses gastos deverão ser subsidiados pelo Estado.
Mas, ao tempo que propõe tal medida, o mesmo governo, por meio da PEC 241, pretende reduzir os gastos públicos em áreas como saúde e educação. Quer dizer, propõe-se um aumento de gastos e, contraditoriamente, se pretende reduzi-los. Como fazer andar um carro quando se puxa o freio-de-mão?
Vejamos, independentemente de partidos ou ideais com os quais compactuamos, a sociedade deve manter o mínimo de diálogo com o governo que aí está. De mesmo modo, o governo deve manter igualmente aberto um canal de diálogo com a sociedade.
Podemos e devemos propor reformas na educação brasileira, mas com cuidado, carinho e diálogo. Ou seja, nisso discordamos de Fernando Pessoa. Avançar é preciso sim; viver, contudo, também. Navegar é preciso, mas sem nos afogarmos.
Iago Rodrigues Ervanovite, 23 anos, é advogado, formado pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, secretário nacional da Pastoral da Juventude Estudantil (PJE) e membro da Coordenação da Pastoral Juvenil Nacional da CNBB.