Lucas, como inspirador escritor de um dos Evangelhos de Jesus Cristo, procura compreender a boa-notícia de maneira especial, incluindo também o texto dos Atos do Apóstolos, em três tempos. O primeiro (Lc 1,5-3,20), narrado de forma mais curta, é o tempo que prepara a vinda do Messias, ou seja, o tempo do Antigo Israel. Esse ciclo termina com João Batista. Lucas, com toda clareza acena, para uma ruptura a ponto de narrar o batismo de Jesus, aqui se percebe o segundo tempo, (Lc 3,21s). O segundo tempo, que corresponde a grande parte do Evangelho de Lucas (Lc 3,21-24,49), é o tempo em que Jesus de Nazaré inaugura o Reino de Deus, anuncia o Pai misericordioso e faz o caminho até Jerusalém, onde é morto e ressuscitado. Já o terceiro momento é o da comunidade primitiva Igreja-comunidade, que expande toda salvação de Cristo até os confins da Terra, animada pela força do Espírito do Senhor ressuscitado.
Como afirma Afonso Murad, no livro Maria, toda de Deus e tão humana: “Maria é a única pessoa presente nos três ciclos. Ao lado de Zacarias, Isabel e João Batista, Simeão e Ana, e abre caminho para o Salvador, enquanto mãe do Messias. No tempo de Jesus, faz parte do grupo de seus seguidores, como exemplo de discípulo, que escuta, medita e põe em prática a Palavra de Jesus. Por fim, enquanto, membro da comunidade cristã, inaugura o tempo da Igreja, em Pentecostes”.
Aqui se percebe que Lucas faz questão de apresentar Maria como essa mulher que faz parte da história de Israel e da comunidade primitiva; nesse momento, ela supera a oposição entre a família biológica de Jesus e os seus seguidores, pois eles fazem parte do grupo que, em oração, esperava a vinda do Espírito Santo. É algo muito evidente nos Atos dos Apóstolos (1,13s): “Entraram na cidade [...] Todos eles perseveravam na oração em comum, com algumas mulheres entre elas Maria, mãe de Jesus e com os irmãos dele”.
Maria é essa mulher cheia do Espírito Santo. Sendo esta mulher de todos os tempos, ela não deixaria de estar presente com os discípulos no cenáculo, pois ali estava a comunidade, ali estava a igreja à qual o Filho tinha constituído com os apóstolos.
No tempo da preparação, o Espírito é o poder de Deus que conduz as pessoas a Jesus. É por meio do Espírito Santo que Maria engravida e, ao ficar grávida, é impulsionada a ir visitar sua prima Isabel, a qual também fica repleta do Espírito (Lc 1,41) e profetiza sobre Maria. Nesse contexto, Maria é especialmente envolvida pelo Espírito Santo. Ele age em Maria não somente no processo da encarnação do filho de Deus, mas também na sua fé, dando-lhe a força para acolher o mistério divino, fazer-se serva e peregrinar como discípula do Senhor, como também ressalta Murad.
Não podemos desconsiderá-la como esta “interlocutora do Pai em seu projeto de enviar seu Verbo ao mundo para a salvação humana”, afirma a Conferência Geral do Episcopado Latino-americano (CELAM) no Documento de Aparecida. Maria, com sua fé, é a primeira da comunidade dos crentes em Cristo e, também, se faz colaboradora do renascimento espiritual dos discípulos.
Maria nos recorda que Deus escolhe preferencialmente os simples e humildes para iniciar o Reino de Deus, a recriação da humanidade e do cosmos. A partir do Magnificat, ouve-se o apelo por novas relações interpessoais, econômicas, políticas, culturais e ecológicas. Maria, sendo esta mulher de todos os tempos, simboliza o ser humano em construção, aberto a Deus, tocado pelo Espírito Santo, cultivando um coração mais solidário e justo.
Ao considerarmos Maria esta mulher de todos os tempos, alimentamos, assim como Ela, um coração agradecido a Deus, que o louva por todo o bem que ele realiza em nosso meio e por meio de nós. Precisamos então perguntar-nos a propósito de Maria e seus privilégios, assim como faz Edward Shillebeeckx no livro Maria, Mãe da Redenção, qual lugar ela deve ocupar numa vida cristã consciente e plenamente vivida, e qual será nossa atitude religiosa para com a Mãe de nosso Redentor e mãe da nossa redenção.
O culto de Maria na Igreja
Ao falar em culto é bom definir realmente o que é isso na visão cristã. Culto quer dizer louvor, agradecimento, pedido. É por isso que os cristãos prestam cultos a Deus. Mas será que é apenas a Deus mesmo? Nós, católicos, também louvamos a Maria, de um modo simples e bem particular. O papa Paulo VI nos ajuda a entender essa realidade, da seguinte forma: “O culto cristão, de fato, é por sua natureza culto ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, ou, conforme se expressa a liturgia, ao Pai por Cristo no Espírito. Nesta perspectiva, torna-se ele extensivo, legitimamente, se bem que de maneira substancialmente diversa, em primeiro lugar e de modo singular, à Mãe do Senhor, e depois aos santos, nos quais a Igreja proclama o Mistério Pascal, por isso mesmo que eles sofreram com Cristo e com Ele foram glorificados”.
Portanto, o culto a Maria não é uma idolatria, mas acontece ligado ao mistério de Jesus Cristo, do qual ela participa como Mãe (LG, n.66). Por isso, a reforma litúrgica feita no Concílio exigiu uma revisão da presença de Maria nos mistérios do Cristo celebrados durante o ano. O papa Paulo VI ressalta essa reforma de maneira muito simples e atual. O culto a Maria, com base no Advento, sublinha sua maternidade divina, ou seja, a Imaculada Conceição, festejada em 8 de dezembro. Depois, Maria é lembrada em todo o tempo de Natal para recordar aos fiéis que ela é o modelo da escuta e da contemplação do salvador.
É aqui que muitos cristãos católicos exageram, confundindo a veneração com a devoção. É sempre bom lembrar que o povo chega a Jesus por Maria e sabe da importância desta realidade salvífica. As festas, como os títulos ligados a diversas maneiras de devoção mariana, tanto no Ocidente quanto no Oriente, nos ensinam que o papel de Maria no mistério de Cristo abrange uma imensa participação no grande projeto salvífico do Pai.
Padre Ildelfonso Mesquita, SDB, é padre salesiano, psicólogo clínico e mestre em Gestão Educacional.