Neste artigo, é minha pretensão devolver alguns aspectos que percebi como resultado do Documento da Etapa Continental do Sínodo – DEC – uma laboriosa síntese dos 112 relatórios das Conferências Episcopais do Mundo, 15 das Igrejas Orientais Católicas, 17 dos Dicastérios da Cúria Romana, além das contribuições dos Superiores Religiosos (USG/UISG), de vários Institutos de Vida Consagrada, de Associações de leigos e uma volumosa colaboração vinda das redes sociais, no chamado de “Sínodo digital”. Esse mutirão de participação e comunhão é o símbolo mais eloquente da voz do Povo de Deus no processo sinodal.
A imagem da tenda
O DEC trouxe para nós a imagem da tenda, típica morada dos povos beduínos na Bíblia (Is 54,2). Debaixo desta tenda todos precisam ser acolhidos. Trata-se da imagem da Igreja, Povo de Deus, “povo messiânico, cuja cabeça é Cristo” (Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, 9).
Para refletir sobre o DEC na Região Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile), fomos convocados para uma experiência de escuta do Espírito Santo nos dias 6 a 10 de março em Brasília, DF. Éramos mais de 180 pessoas. Em outras regiões da América Latina a experiência também aconteceu. Numa aula sinodal intercultural, com a questão do idioma, que poderia ser um interdito, fomos capazes de escutar o que o Espírito Santo falou através da voz dos nossos povos, das expectativas e sonhos das Igrejas locais.
Alarga o espaço da tua tenda
É preciso alargar as lonas, que protegem o povo do sol, do vento e da chuva, fazendo da tenda o espaço de convivência comunitária. A metodologia do encontro pedia que a primeira atitude diante da leitura atenta do DEC fosse descobrir as luzes, as experiências iluminadoras. Destaco algumas: o desafio da diversidade cultural, religiosa e sexual em nossa Igreja; o resgate dos conselhos em formato sinodal; a realidade do sensus fidei fidelium como forma coerente de dar voz ao Povo de Deus; ter o olhar do discípulo de Jesus Cristo.
Percebeu-se a necessidade de repensar a presença ativa da mulher nos organismos de governo e decisão, inclusive com a retomada do diaconato feminino; de, a partir da corresponsabilidade batismal, repensar a eclesiologia do Povo de Deus com a riqueza dos carismas e da instituição, vencendo os ranços do clericalismo; e de resgatar, à luz da Eclesiam Suam, encíclica de São Paulo VI, o valor do diálogo no atual cenário da indiferença, da subjetividade e da riqueza ministerial.
Nas reflexões, houve a constatação de que a Cúria Romana e as Conferências Episcopais estão se inserindo no processo sinodal com uma clara mudança de mentalidade; ressaltou-se o desejo de que a espiritualidade de comunhão seja sinodal e redescubra o grande valor da religiosidade popular e de que as tensões não sejam consideradas obstáculos, mas sim energia que impulsiona a ação evangelizadora.
Esticar as cordas
Para fortalecer a tenda e equilibrar as tensões, precisamos entender os ventos que hoje estão desequilibrando a vivência eclesial. Destacamos algumas tensões que foram apontadas na Assembleia: a percepção de que estamos numa grave crise eclesiológica; a dificuldade de um ecumenismo prático; a forte mentalidade clericalista; a realidade das famílias interconfessionais; a rejeição ao Papa Francisco em vários âmbitos da Igreja; a ausência da voz dos jovens nas consultas e as estruturas hierarquizantes que enfraquecem a ministerialidade.
Refletimos também sobre o caminho feito até aqui como desdobramento do Concílio Vaticano II, em particular a realização dos sínodos sobre a missão dos leigos na Igreja, sobre a vida religiosa consagrada, sobre a Palavra de Deus e a Eucaristia e sobre os jovens. Esse processo sinodal recuperou e atualizou muitas questões teológicas, históricas e doutrinais que ficaram engavetadas e que, agora, precisam ser resgatadas.
Fixar bem as estacas
A grande questão aqui é ter presente a realidade, a terra fértil de nossas Igrejas locais. É nelas que a tenda é armada e tem a capacidade de mover-se. Nesse aspecto, nos perguntamos sobre os temas que precisam ser debatidos no Vaticano na sessão do Sínodo de outubro de 2023. Destaco alguns: o resgate da teologia batismal e a superação do legalismo; a espiritualidade de comunhão como antídoto contra o clericalismo e o hierarquismo; o valor da diversidade e a inclusão na luta pela justiça e paz e a presença da vida religiosa consagrada nos âmbitos diocesanos.
No meu grupo foi consenso que será necessária uma reflexão canônica, inclusive com mudanças que considerem formas deliberativas, num processo sinodal, dos conselhos de pastoral, econômico, diocesanos, assembleias etc. É preciso também reforçar as práticas já existentes de sinodalidade, como as Conferências Episcopais, CLAR, CRB, CNL etc., que praticam consultas e decisões à luz do Espírito Santo.
Como saio dessa experiência sinodal?
Faço meus alguns ecos da Assembleia e compartilho algumas convicções pessoais:
- Ficou evidente que a experiência vivida na oração e na escuta ativa foi enriquecedora e ajudou todos a crescerem no espírito sinodal.
- Há o desejo de que o que refletimos na etapa continental seja de fato ouvido no Sínodo, em outubro.
- Há um consenso de que necessitamos de uma eclesiologia do Povo de Deus, com o resgate da dignidade batismal, fonte das vocações e do sensus fidei.
- A corresponsabilidade eclesial, a partir da consciência batismal, insere a mulher não apenas em ministérios, mas nas estruturas de governo e nas decisões da ação evangelizadora em todos os níveis da vida eclesial.
- É preciso repensar a teologia dos ministérios, a participação e a inclusão, segundo a riqueza dos carismas.
- A liturgia precisa ser vivida na sua variedade e beleza, como expressão do ser Igreja.
- A superação do clericalismo com um processo de formação integral, para todo o Povo de Deus numa chave sinodal, é uma exigência da ação evangelizadora.
- Torna-se necessária a revisão do Código de Direito Canônico, para que proporcione a compreensão renovada da função dos conselhos e dos organismos eclesiais a partir da sinodalidade.
- Precisa amadurecer na Igreja a necessidade de uma pastoral digital que chegue aos milhões de católicos que estão indiferentes, afastados ou que se excluíram por razões de conflitos.
- É também necessário que a sessão sinodal de outubro reflita sobre a complexa situação social, política e econômica atual, para situar a ação evangelizadora numa terra real, onde a tenda possa ser esticada e acolha a todos.