É de olho nesse lance, de uma das oficinas de Futebol de Rua que ocorre há mais de dois anos com crianças e adolescentes na Obra Salesiana de Apoio Fraterno – OSAF, em Araras, SP, que damos um pontapé na reflexão sobre a participação das meninas no futebol.
O Fútbol Callejero, ou Futebol de Rua, é uma prática esportiva sociopedagógica, idealizada em meados de 1994 pelo ex-jogador de futebol argentino Fabian Ferraro. Atualmente, mais de 200 organizações, em 12 países na América Latina, vestiram essa camisa, sensibilizando cerca de 100 mil crianças, adolescentes e jovens a participarem da construção dessa história que começou a se propagar, no Brasil, em decorrência do Mundial de Futebol de Rua, que aconteceu em São Paulo em 2014.
Esse intercâmbio trouxe a metodologia para o Brasil, incentivando projetos do terceiro setor e formando a Rede Paulista de Futebol de Rua (RPFR), que conta com 18 polos. A OSAF inaugurou as quadras salesianas com essa metodologia, abrindo portas para a Casa do Puríssimo Coração de Maria, Casa Betânia (em Guaratinguetá) e CEMARI (em Lorena) também participarem da RPFR.
Jogo em três tempos
No Futebol de Rua, o jogo divide-se em três tempos. No primeiro, as equipes combinam os acordos e regras. No segundo, é hora de entrar em ação, com a bola nos pés, colocando em prática tudo que foi combinado. O terceiro tempo é o momento de diálogo, em que as equipes discutem sobre os três pilares: respeito, cooperação e solidariedade, somando pontuações.
A mediação tem como objetivo não só orientar o diálogo para um acordo entre as partes, mas também, e sobretudo, formular questões a partir do que se apresenta nas entrelinhas, muitas vezes trazendo para a reflexão no coletivo falas sobre preconceito, exclusão e segregação, sem perder, portanto, a competitividade sadia da prática esportiva. Resumindo, a ferramenta de trabalho do mediador é a sua capacidade interventiva - que por meio do diálogo, facilita a condução dos grupos.
Participação feminina
Após esta introdução, retomamos a cena do início do texto e estabelecemos aqui uma breve reflexão sobre a presença da mulher no futebol. Não é necessário nos aprofundarmos no fato de que o futebol é e sempre foi dominado por homens. Embora existam leis que garantem o acesso às condições, infraestrutura, projetos e investimentos para o futebol feminino, ainda é muito pouco comparado à enxurrada de dinheiro movimentada pelo futebol de homens e toda sua arquitetura. Vale mencionar que este domínio escancara as portas para uma estrutura machista e a triste cultura da segregação.
Neste sentido, será que podemos pensar em outras práticas na cultura do futebol? A experiência que a OSAF traz com o Futebol de Rua evidencia que a presença de uma mulher, como educadora social e mediadora, pode mexer nesta cultura que também se apresentava na Obra, onde os meninos não só dominavam a atividade do futebol, como tomavam para si a quadra nos horários de brincadeiras livres. As estratégias que foram sendo adotadas, com o passar do tempo, trouxeram o machismo como tema de discussão para todo o grupo e despertaram nas meninas o apetite e desejo pelo futebol, para que, mais tarde, meninos e meninas partilhassem a quadra, estabelecendo acordos e revezamentos de maneira autônoma.
Vale recordar que nas primeiras oficinas de Futebol de Rua, em 2018, a única participação feminina era da educadora, mesmo a proposta sendo a de oficina mista. Aos poucos, as meninas se sentiram mais estimuladas e seguras em participar. E, de um modo geral, abriu-se espaço à possibilidade do grupo como um todo aprender e desenvolver habilidades outras, tais como o diálogo, a argumentação e a mediação, ampliando a prática para além das especificidades esportivas.
Assim, percebemos que houve um maior interesse das meninas em acompanhar a mediação e frequentar as formações da rede, se apropriar dos espaços, estabelecer pedidos para amistosos e campeonatos. Também, que houve o envolvimento dos meninos, pois vestiram a camisa da proposta do Futebol de Rua em seus pilares de respeito, cooperação e solidariedade, exercitando, na prática, os caminhos para construir a igualdade em um futebol misto, sem violência e possível às diferenças e ao protagonismo juvenil.