A amizade em Dom Bosco

Quinta, 13 Setembro 2012 10:02 Escrito por  José Augusto Abreu Aguiar
  Na relação de amizade de Dom Bosco com os seus contemporâneos podemos detectar o quanto o outro foi significativo na origem e aplicabilidade de seu sistema de educação. No outro, na relação desejada, Dom Bosco fundamentou grande parte de suas crenças.   Podemos refletir sobre a importância da amizade para a elaboração do sistema educativo de Dom Bosco a partir de três experiências e suas características: as amizades com padre João Melquior Calosso (1829), com Luís Comollo (1832) e com Tiago Levi-Jonas (início da década de 30 do século XIX). Os encontros com esses três personagens fundamentais são descritos no livro de Terésio Bosco: Dom Bosco, uma biografia nova (Editora Salesiana Dom Bosco, 1995).  

Perceber o outro

“João Bosco voltava de uma prédica de missionários. No caminho, Pe. Calosso percebe João só.

– Donde és, meu amigo?

– De Becchi. Fui à pregação dos missionários.

– O que é que terás tu compreendido, com toda aquela dose de latim!”

João Bosco, com toda a desenvoltura, repetiu ali, de cor, a prática inteira como se estivesse a lê-la num livro.

Através do encontro com padre Calosso, carregado de afetividade e acolhimento, Dom Bosco tece uma das maiores estratégias do seu projeto operativo:perceber o outro, isto é, acolhê-lo com o objetivo de estabelecer uma relação amigável entre o educador e o jovem. Relação de amizade, de confiabilidade e de aceitação.

A amizade, na trajetória histórica de Dom Bosco, não abria mão da percepção do outro. Perceber o outro, para Dom Bosco, passou a significar uma atenção às pessoas concretas, acolhendo-as, compreendendo suas dificuldades e linguagens e estabelecendo um projeto que pudesse responder à situação (realidade) vivida por elas.

O perceber o outro, em Dom Bosco, configurou-se então como a abertura para o reconhecimento dos valores e a aceitação da diversidade e das limitações dos jovens. Configurou-se como uma atitude, uma opção fundamental, que consolidaria o existir de relações positivas com as pessoas, com o ambiente, com a realidade e com o mundo.

 

Desenvolver o outro

A experiência de Dom Bosco com padre Calosso servirá de base para que, no futuro próximo, ele possa tecer o seu projeto operativo.

Dom Bosco forjou, sem muitos escritos, uma pedagogia sustentada na opção preferencial pelos jovens, na preventividade, em um ambiente educativo de persuasão, na presença-assitência e na orientação vocacional. Sua pedagogia possuía à época (e continua possuindo) como finalidade a formação de “bons cristãos e honestos cidadãos”.

Sendo assim, a pedagogia de Dom Bosco passa a ter como característica fundamental a preocupação que o educador deve ter em oferecer situações positivas que permitam aos jovens elaborarem um projeto de vida sintonizado com a cidadania, com a autonomia promotora de protagonismos. Logo, sua pedagogia passou a possuir como foco a prevenção formativa e, de forma alguma, a preocupação com ações que estivessem, pura e simplesmente, voltadas para o impedimento do mal.

Por fim, de fundamental importância, Dom Bosco define a necessidade de uma presença constante junto ao jovem para que ele possa conhecer-se, aceitar-se, valorizar-se, realizar-se e optar por um projeto de vida identificado com a terra e o céu.

 

Relacionar-se com alegria

“Ninguém pode imaginar a minha alegria. Amava o Pe. Calosso como a um pai. Servia-o de boa vontade de todas as coisas. Aquele homem de Deus tinha-me um tal afeto que várias vezes me disse: ‘Não se preocupe com o futuro. Enquanto eu viver não deixarei faltar nada’. Estava plenamente feliz.”

A alegria é um elemento de vital importância dentro do projeto operativo de Dom Bosco. Não estamos nos referindo à alegria como uma expressão exclusiva dos jovens. Ela é também muito importante para a vida e a ação dos educadores. Dom Bosco em tudo, em tudo mesmo, nas coisas mais complicadas, desgastantes, agia com muita alegria, transformando tarefas pesadas em fardos pequenos de algodão.

Toda expressão de Dom Bosco, na relação com os jovens, era de alegria. Ele envolvia, demonstrando que o trabalho com os jovens, apesar de muitas vezes contigenciado por graves problemas, era algo prazeroso.

Em decorrência da opção pela “pedagogia da alegria”, as obras salesianas, ao longo da história, sempre tiveram a preocupação em criar ambientes onde o clima de envolvimento total fosse facilitador da integração dos jovens com os objetivos do sistema preventivo.

 

Perdoar o outro

“Um rapaz novato, aparentando 15 anos, ia tranqüilamente para o seu lugar e, no meio de toda aquela gritaria, punha-se a ler ou a estudar. Certa vez aproximou-se dele um insolente, tomou-o pelo braço:

–Vamos brincar.

–Não sei.

–Vai aprender. E não espere ser obrigado à força.

–Se quiser bater, pode bater. Mas eu não vou.”

O mal-educado deu-lhe duas bofetadas que ecoaram pela sala de aula. Logo após ele ofereceu o perdão ao agressor. João Bosco ficou desconcertado. Aquilo era um ato “heroico”. Com a nova amizade, João Bosco descobriu que existia em Luís Comollo uma grande riqueza espiritual apesar da aparente fragilidade. Rapidamente passou a ser o protetor de Luís.

João Bosco, nesse encontro com Comollo, descobriu a grandeza do perdão. Apesar de relutar na aceitação do fato, João irá associá-lo ao sonho dos 9 anos: “Não com pancadas, mas com a caridade irá conquistar esses seus amigos”.

O perdão irá constituir no projeto operativo de Dom Bosco um elemento central de sua espiritualidade. Fundamentará relações sadias, saudáveis e terapêuticas, isto é, relações que transmitam saúde e curem. Foram vários os meninos perdoados por Dom Bosco. Para ele, havia em cada menino uma “corda sensível” que deveria ser tocada, ou seja, despertada para que o mesmo pudesse entrar em um caminho que o levasse à realização pessoal e comunitária, como filho de Deus e filho do mundo.

 

Respeitar o diferente

“Na escola frequentada por João Bosco, havia também uns rapazes judeus. Segundo a lei vigente à época, os judeus deviam residir no ‘gueto’, uma parte separada da dos cristãos. Eram ‘tolerados’, isto é, considerados cidadãos de segunda categoria. João os ajudou muitas vezes, fazendo por eles as tarefas de sábado. Pela lei judaica era proibida a realização de qualquer tarefa neste dia da semana. De um deles, Tiago-Levi, a que os colegas chamavam de Jonas, tornou-se grande amigo.”

No tempo de Dom Bosco falar de multiculturalismo seria uma blasfêmia. Falar de relações de amizade baseadas no respeito ao ponto de vista, às interpretações e atitudes do outro, do diferente, constituindo uma fonte de possibilidades de transformação e de criação cultural, era um comportamento “estranho”, um comportamento agressivo às normas e regras da moral vigente.

Dom Bosco, contra tudo e contra todos, assumia o outro demonstrando que as suas formas alternativas de vida são do interesse geral, ainda que muitos não vivam essas formas. Para Dom Bosco, o respeito pelo outro não admite força, violência ou dominação e, sim, o diálogo, o reconhecimento e a negociação das diferenças. Respeitar o outro significava o reconhecimento de sua autenticidade, cujas opiniões e ideias deveriam ser ouvidas e debatidas.

Para Dom Bosco, acima de tudo, na amizade, era preciso desmontar os preconceitos, dialogar sempre, perceber o outro e deixar-se perceber, reconhecer a existência do diferente para que existissem a convivência e o respeito.

José Augusto Abreu Aguiar é professor da Rede Salesiana de Escolas, no Instituto Nossa Senhora da Glória, RJ

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A amizade em Dom Bosco

Quinta, 13 Setembro 2012 10:02 Escrito por  José Augusto Abreu Aguiar
  Na relação de amizade de Dom Bosco com os seus contemporâneos podemos detectar o quanto o outro foi significativo na origem e aplicabilidade de seu sistema de educação. No outro, na relação desejada, Dom Bosco fundamentou grande parte de suas crenças.   Podemos refletir sobre a importância da amizade para a elaboração do sistema educativo de Dom Bosco a partir de três experiências e suas características: as amizades com padre João Melquior Calosso (1829), com Luís Comollo (1832) e com Tiago Levi-Jonas (início da década de 30 do século XIX). Os encontros com esses três personagens fundamentais são descritos no livro de Terésio Bosco: Dom Bosco, uma biografia nova (Editora Salesiana Dom Bosco, 1995).  

Perceber o outro

“João Bosco voltava de uma prédica de missionários. No caminho, Pe. Calosso percebe João só.

– Donde és, meu amigo?

– De Becchi. Fui à pregação dos missionários.

– O que é que terás tu compreendido, com toda aquela dose de latim!”

João Bosco, com toda a desenvoltura, repetiu ali, de cor, a prática inteira como se estivesse a lê-la num livro.

Através do encontro com padre Calosso, carregado de afetividade e acolhimento, Dom Bosco tece uma das maiores estratégias do seu projeto operativo:perceber o outro, isto é, acolhê-lo com o objetivo de estabelecer uma relação amigável entre o educador e o jovem. Relação de amizade, de confiabilidade e de aceitação.

A amizade, na trajetória histórica de Dom Bosco, não abria mão da percepção do outro. Perceber o outro, para Dom Bosco, passou a significar uma atenção às pessoas concretas, acolhendo-as, compreendendo suas dificuldades e linguagens e estabelecendo um projeto que pudesse responder à situação (realidade) vivida por elas.

O perceber o outro, em Dom Bosco, configurou-se então como a abertura para o reconhecimento dos valores e a aceitação da diversidade e das limitações dos jovens. Configurou-se como uma atitude, uma opção fundamental, que consolidaria o existir de relações positivas com as pessoas, com o ambiente, com a realidade e com o mundo.

 

Desenvolver o outro

A experiência de Dom Bosco com padre Calosso servirá de base para que, no futuro próximo, ele possa tecer o seu projeto operativo.

Dom Bosco forjou, sem muitos escritos, uma pedagogia sustentada na opção preferencial pelos jovens, na preventividade, em um ambiente educativo de persuasão, na presença-assitência e na orientação vocacional. Sua pedagogia possuía à época (e continua possuindo) como finalidade a formação de “bons cristãos e honestos cidadãos”.

Sendo assim, a pedagogia de Dom Bosco passa a ter como característica fundamental a preocupação que o educador deve ter em oferecer situações positivas que permitam aos jovens elaborarem um projeto de vida sintonizado com a cidadania, com a autonomia promotora de protagonismos. Logo, sua pedagogia passou a possuir como foco a prevenção formativa e, de forma alguma, a preocupação com ações que estivessem, pura e simplesmente, voltadas para o impedimento do mal.

Por fim, de fundamental importância, Dom Bosco define a necessidade de uma presença constante junto ao jovem para que ele possa conhecer-se, aceitar-se, valorizar-se, realizar-se e optar por um projeto de vida identificado com a terra e o céu.

 

Relacionar-se com alegria

“Ninguém pode imaginar a minha alegria. Amava o Pe. Calosso como a um pai. Servia-o de boa vontade de todas as coisas. Aquele homem de Deus tinha-me um tal afeto que várias vezes me disse: ‘Não se preocupe com o futuro. Enquanto eu viver não deixarei faltar nada’. Estava plenamente feliz.”

A alegria é um elemento de vital importância dentro do projeto operativo de Dom Bosco. Não estamos nos referindo à alegria como uma expressão exclusiva dos jovens. Ela é também muito importante para a vida e a ação dos educadores. Dom Bosco em tudo, em tudo mesmo, nas coisas mais complicadas, desgastantes, agia com muita alegria, transformando tarefas pesadas em fardos pequenos de algodão.

Toda expressão de Dom Bosco, na relação com os jovens, era de alegria. Ele envolvia, demonstrando que o trabalho com os jovens, apesar de muitas vezes contigenciado por graves problemas, era algo prazeroso.

Em decorrência da opção pela “pedagogia da alegria”, as obras salesianas, ao longo da história, sempre tiveram a preocupação em criar ambientes onde o clima de envolvimento total fosse facilitador da integração dos jovens com os objetivos do sistema preventivo.

 

Perdoar o outro

“Um rapaz novato, aparentando 15 anos, ia tranqüilamente para o seu lugar e, no meio de toda aquela gritaria, punha-se a ler ou a estudar. Certa vez aproximou-se dele um insolente, tomou-o pelo braço:

–Vamos brincar.

–Não sei.

–Vai aprender. E não espere ser obrigado à força.

–Se quiser bater, pode bater. Mas eu não vou.”

O mal-educado deu-lhe duas bofetadas que ecoaram pela sala de aula. Logo após ele ofereceu o perdão ao agressor. João Bosco ficou desconcertado. Aquilo era um ato “heroico”. Com a nova amizade, João Bosco descobriu que existia em Luís Comollo uma grande riqueza espiritual apesar da aparente fragilidade. Rapidamente passou a ser o protetor de Luís.

João Bosco, nesse encontro com Comollo, descobriu a grandeza do perdão. Apesar de relutar na aceitação do fato, João irá associá-lo ao sonho dos 9 anos: “Não com pancadas, mas com a caridade irá conquistar esses seus amigos”.

O perdão irá constituir no projeto operativo de Dom Bosco um elemento central de sua espiritualidade. Fundamentará relações sadias, saudáveis e terapêuticas, isto é, relações que transmitam saúde e curem. Foram vários os meninos perdoados por Dom Bosco. Para ele, havia em cada menino uma “corda sensível” que deveria ser tocada, ou seja, despertada para que o mesmo pudesse entrar em um caminho que o levasse à realização pessoal e comunitária, como filho de Deus e filho do mundo.

 

Respeitar o diferente

“Na escola frequentada por João Bosco, havia também uns rapazes judeus. Segundo a lei vigente à época, os judeus deviam residir no ‘gueto’, uma parte separada da dos cristãos. Eram ‘tolerados’, isto é, considerados cidadãos de segunda categoria. João os ajudou muitas vezes, fazendo por eles as tarefas de sábado. Pela lei judaica era proibida a realização de qualquer tarefa neste dia da semana. De um deles, Tiago-Levi, a que os colegas chamavam de Jonas, tornou-se grande amigo.”

No tempo de Dom Bosco falar de multiculturalismo seria uma blasfêmia. Falar de relações de amizade baseadas no respeito ao ponto de vista, às interpretações e atitudes do outro, do diferente, constituindo uma fonte de possibilidades de transformação e de criação cultural, era um comportamento “estranho”, um comportamento agressivo às normas e regras da moral vigente.

Dom Bosco, contra tudo e contra todos, assumia o outro demonstrando que as suas formas alternativas de vida são do interesse geral, ainda que muitos não vivam essas formas. Para Dom Bosco, o respeito pelo outro não admite força, violência ou dominação e, sim, o diálogo, o reconhecimento e a negociação das diferenças. Respeitar o outro significava o reconhecimento de sua autenticidade, cujas opiniões e ideias deveriam ser ouvidas e debatidas.

Para Dom Bosco, acima de tudo, na amizade, era preciso desmontar os preconceitos, dialogar sempre, perceber o outro e deixar-se perceber, reconhecer a existência do diferente para que existissem a convivência e o respeito.

José Augusto Abreu Aguiar é professor da Rede Salesiana de Escolas, no Instituto Nossa Senhora da Glória, RJ

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