Dom Bosco descreve uma paisagem selvagem e inexplorada, uma vasta planície desolada sem montes ou colinas. Ao longe, montanhas escarpadas delimitavam o horizonte. “Vi uma multidão de homens percorrendo esse território. Estavam quase nus, de aparência feroz e estatura imponente. Seus cabelos longos e desalinhados e a pele bronzeada contrastavam com os amplos mantos de peles de animais que cobriam suas costas. Empunhavam lanças longas e laços como armas”, narra Dom Bosco.
Esse sonho missionário, ocorrido por volta de 1872, marcou profundamente o santo, que acreditava tratar-se de um aviso divino. Ele mesmo confidenciou: “Este sonho me impressionou profundamente, mas seu significado específico não estava claro. Entendi, porém, que estava relacionado a missões estrangeiras, um anseio que já carregava em meu coração há muito tempo”.
Dom Bosco compartilhou sua visão com o Papa Pio IX em 1876, e também com outros salesianos. Inicialmente, acreditava que os indígenas representavam os povos da Etiópia, depois considerou os arredores de Hong Kong, a Austrália e as Índias. Somente em 1874, após insistentes convites para enviar salesianos à Argentina, ele compreendeu que os nativos vistos no sonho eram os povos originários da vasta e quase inexplorada Patagônia.
Um estilo “oratoriano” de evangelizar
Na visão, Dom Bosco observa um grupo de missionários de diversas ordens religiosas tentando evangelizar os indígenas. “Eles se misturaram aos nativos, mas logo foram atacados e assassinados de forma brutal”, relata, angustiado. Dom Bosco questionava como seria possível converter um povo tão indomável.
No entanto, surge uma cena distinta: um grupo de missionários se aproxima dos indígenas com rostos alegres, acompanhados por grande número de crianças. Essa abordagem surpreende profundamente. Eles não iniciam com pregações, catecismos ou cruzes erguidas. Seu método é simples e cativante: a alegria. Os meninos, com sua vivacidade, evangelizam os mais velhos.
Reconhecendo-os, Dom Bosco percebe que são seus missionários salesianos. “Observei atentamente e vi que eram nossos. Alguns eram bem conhecidos por mim”. Era como se ele visse refletido o coração do Sistema Preventivo: uma evangelização baseada no amor, na proximidade e na alegria.
A conversão e o milagre da transformação
Embora temesse pelo destino dos missionários, Dom Bosco não podia interferir na cena. Para sua surpresa, ao invés de violência, os indígenas os acolhem com cortesia. “Vi que os missionários se aproximavam, falavam, e os indígenas os escutavam com atenção. Eram ensinados, corrigidos e aceitavam com docilidade”, relata.
O método salesiano, pautado em “fazer-se amar”, demonstrava seu poder. O que parecia impossível tornava-se realidade: a ferocidade dos nativos transformava-se em receptividade, fruto de uma abordagem que priorizava o vínculo humano e a alegria de viver o Evangelho.
Maria, a chave de tudo
Em um momento marcante do sonho, os missionários rezam o santo Rosário e entoam cânticos à Virgem Maria. Os indígenas, comovidos, jogam suas armas aos pés dos salesianos e também se ajoelham. Um deles entoa “Louvada seja Maria”, e toda a multidão o acompanha em perfeita harmonia. Dom Bosco desperta, profundamente impressionado.
Para ele, a transformação ocorrida devia-se à intervenção de Maria. “Ela faz tudo”, afirma, reconhecendo nela a força que conduz os salesianos e transforma os corações.
Reflexão e superação
Esse sonho reflete não apenas o desejo missionário de Dom Bosco, mas também os desafios e as limitações da época. Por um lado, suas visões estavam impregnadas de preconceitos culturais e ideológicos típicos do contexto europeu do século XIX. Por outro, emergia com força o carisma salesiano, baseado na fé e no amor ao próximo, que transcende tais condicionamentos.
Dom Bosco nos deixa um exemplo de perseverança e de confiança no método que ele próprio vivenciou: aproximar-se com alegria, criar laços de amor e oferecer a presença transformadora de Deus. Assim, ele abriu caminhos que até hoje inspiram a missão salesiana ao redor do mundo.