30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

Segunda, 13 Julho 2020 11:12 Escrito por  Amós Santiago de Carvalho Mendes, SDB
A celebração dos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho, aponta a urgente necessidade de promo(ver) os invisíveis.  

O ano de 2020 tem sido marcado por diversas situações, algumas muito desanimadoras. A pandemia do novo coronavírus, em certo sentido, apenas revelou e aprofundou um assombroso cenário de crises, as quais perpassam os diversos âmbitos da vida humana e suas relações com o planeta, crises desde o aspecto político-econômico até as bases da ética, da justiça e da paz. Imerso nesse panorama crítico é que se encontra o ser humano, muitas vezes com sua dignidade profundamente ferida ou desconsiderada, sempre em busca de qualidade de vida, inclusão social, cidadania, educação e uma série de demandas necessárias para lhe assegurar uma existência minimamente possível.

 

É exatamente neste cenário que o Brasil comemora os 30 anos da Lei Federal número 8.069, mais conhecida como ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionada em 13 de julho de 1990. Diante disso, é oportuno questionar: como estão as crianças e os adolescentes de nossa pátria? Após três décadas de vigência dessa lei considerada “divisora de águas”, temos mesmo o que comemorar?

 

Longe dos extremismos ideológico-partidários, fora do sensacionalismo das mídias, do preconceito das massas ou da desconfiança em torno das diversas autoridades e instituições, o fato é que, em sua grande parte, a infância e a adolescência no Brasil continuam como periferias existenciais esquecidas e desprezadas. Para ilustrar em dados, conforme estudos realizados pela Fundação Abrinq a partir das estatísticas mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dados expressos no documento Cenário da Criança e do Adolescente 2019, no Brasil, 22,6% das crianças e adolescentes com idade entre 0 e 14 anos vivem em situação de extrema pobreza. Tal índice corresponde a mais de 9,4 milhões de pessoas em pleno desenvolvimento.

 

Ademais, entre outros índices alarmantes, 2,5 milhões de crianças e adolescentes até 17 anos trabalham, 12,8% dos adolescentes de 15 a 17 anos de idade estão fora da escola, 16,4% das adolescentes são mães antes dos 19 anos e, no sentido do lazer, 64,9% dos estabelecimentos de Educação Básica não possuem quadras esportivas.

 

Esses e tantos outros dados apenas reforçam que antes da complexidade política, econômica e sanitária trazida pela pandemia do corrente ano já existiam outras complexidades, todas em torno dos fundamentos, incluindo os direitos primários. Já estava instaurada no Brasil uma profunda crise social, de modo que os mais socialmente vulneráveis continuam padecendo em suas vulnerabilidades. Isso também faz confirmar que, mesmo após o advento e o reconhecimento dos chamados direitos fundamentais e universais, seja nos documentos internacionais ou na legislação brasileira, nossas crianças e nossos adolescentes, em grande parte, ainda não são tomados como pessoas em condição de desenvolvimento, ou mesmo como pessoas.

 

Ora, fora exatamente este o horizonte consolidado, por exemplo, tanto na reconhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada mediante a Assembleia Geral das Nações Unidas de 1948, a qual preconizou em seu Artigo VI que todo ser humano, em todos os lugares, tem o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei, quanto na Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas – ONU em 1959, a qual, por sua vez versou, entre outros princípios, sobre a necessária proteção social e a promoção do desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade para os referidos sujeitos de direito.

 

Prerrogativas jurídicas como essas, após um histórico de manifestações e de árdua atuação civil, foram incorporadas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, principalmente em seu artigo 227, e ratificadas de forma implementar no próprio ECA, consolidando no Brasil o que se concebe como doutrina da proteção integral, dotada de múltiplos princípios e garantias. A partir disso é que, superadas as atrocidades do passado, principalmente do Código de Menores de 1979 e sua “doutrina da situação irregular”, as crianças e os adolescentes brasileiros passaram a ser vistos como sujeitos de direitos e considerados em sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, o que requeria, sob o viés da “prioridade absoluta”, a proteção em todos os âmbitos e instâncias sociais.

 

Essas e outras garantias são sinal de que houve no Brasil a superação, ao menos no sentido intencionalmente teórico, de vários séculos de negligência, violação e abuso de direitos. No entanto, não se pode negar que mesmo no presente século, caracterizado pela liberdade e pelo império da ciência, da técnica e do capital, e apesar de todas as garantias juridicamente asseguradas, nem tudo está concretizado, uma vez que a efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, largamente difundidos, ainda está coberta de sombras e incertezas, sendo que, nos dizeres do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909 - 2004), uma coisa é proclamar direitos, outra coisa é desfrutá-los efetivamente.

 

Perante isso, embora ricamente fundada e paulatinamente implementada em algumas esferas do país, é possível afirmar que nas três últimas décadas falta a plena aplicabilidade da lei. De fato, ainda há crianças e adolescentes envoltos em vulnerabilidades variadas, e muitos de nossos pequeninos continuam fora do espectro da legislação, dado que as garantias previstas em lei não os alcançam, as proteções não se realizam e, assim não são concretizados os anseios mais profundos destes brasileiros em busca de desenvolvimento integral. São as crianças e os adolescentes invisíveis, e o mais difícil é constatar que isso não acontece por “falta de olhos”.

 

É exatamente neste sentido que se deve buscar, como dizia a filósofa Hannah Arendt (1906 - 1975) a essência dos direitos humanos, a saber, o direito a ter direitos, e promover, obstinadamente, em todos os espaços possíveis, a defesa dos meios capazes de possibilitar o desenvolvimento integral da pessoa, desde a mais tenra idade. A discussão empreendida até aqui, mais do que nostalgizar sobre situações do passado, mais do que filosofar sobre contextos fora da realidade, deseja reconduzir ao tema das exigências jurídicas como resposta cabível. É, deveras, uma resposta apropriada para uma situação inapropriada pois, de fato, o planeta está em guerra e, maior do que o inimigo viral, que a ciência atual se credita capaz e ensaia vencer, são os inimigos da infância e da adolescência que se travestem de uma engenharia social não integral e de uma economia tecnicista que promete um desenvolvimento fabulosamente irrestrito, às custas do sofrimento e da exploração de uns tantos, os mais vulneráveis e invisíveis.

 

É preciso promover – e ver – os invisíveis e talvez seja esta a síntese desses 30 anos de alguns avanços, sim, mas também de muitas inaplicabilidades do ECA e, no sentido político, alguns retrocessos. Para se prosseguir, é essencial acurar a visão deturpada, ainda ligada aos preconceitos e à mentalidade dos antigos códigos de menores, e fazer a travessia de uma imagem reducionista dos direitos das crianças e dos adolescentes para uma visão integral de homens e mulheres em crescimento. Aí se desvela uma nova perspectiva, um novo olhar que se atenha, pelo menos, ao mínimo suficiente para a garantia factual e existencial da dignidade desses sujeitos de direitos, a mesma dignidade apregoada e reclamada em tantos aparatos legais.

 

Enquanto perdurarem as divisões políticas e ideológicas, os interesses econômicos que subjugam pessoas a serviço de um sistema, enquanto houver falta de vontade política dos gestores, enquanto as grandes inteligências, lideranças e economias não se atentarem ao cuidado e ao respeito à vida, a efetivação da dignidade do ser humano desde a gestação, enquanto, enfim, houver pessoas tratadas como coisas, alienação, sobrevida nos subúrbios das cidades e nos ambientes rurais, exploração mediante a dominação dos mais humanamente favorecidos sobre os desumanamente desvalidos, houve inoperância e ineficácia dos direitos fundamentais. E enquanto existir uma criança que desconheça seus direitos e não se dê conta do seu próprio valor humano, o ECA terá sido insuficiente e a humanidade terá falhado na compreensão da dignidade da criança e do adolescente.

 

Ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal, o ECA e tantos outros documentos continuem sendo apenas um sonho ou mais uma “declaração”, não se pode perder de vista a urgente oportunidade de se renovar e repropor, de forma generalizada, o diálogo com e sobre a criança e o adolescente, sua dignidade a ser protegida e suas vulnerabilidades a serem redimidas ou dirimidas. Por outro lado, justiça social que se espera, ainda que vivida democraticamente, não é plenamente realizada apenas com os esforços da autoridade política e demais poderes. O todo da justiça necessita do justo agir de todos. Sem esse movimento coletivo de cuidado e de promoção da pessoa, desde o período pré-natal, o ideal de justiça e de paz, tão acentuado ao longo da história humana, continuará distante da realidade.

 

O ECA, que nasceu mediante muita luta, não pode subsistir nem sobreviver sem ser na luta. O problema é que deixamos de lutar ou estamos lutando pouco, por isso estamos perdendo e regredindo numa história que tinha tudo para somente avançar. No que se trata de efetivar o ECA e garantir os direitos humanos de crianças e adolescentes, o combate é uma constante. Isso significa que uma nova cultura humana deve ser impulsionada, empreendida, e já é chegado o momento de se redirecionar as referências, os valores, resgatar princípios e de se assumir compromissos com a infância e a juventude, acreditar nela, educá-la, valorizá-la, revivê-la e deixá-la viver.

 

Todo o exposto e todo o esforço se trata de dar visibilidade aos invisíveis. Eles têm nome, têm história, uma face, um corpo frágil, uma dor a ser aliviada e uma alegria a ser promovida. Nós é que não temos tido olhos purificados e apurados o bastante para enxergarmos a profunda dignidade que reside neles. Em meio a tantos desafios, tal como conclama a Estreia Salesiana de 2020, como “bons cristãos e honestos cidadãos”, nós somos chamados a perseverar, defender e apresentar sempre as razões da nossa própria esperança (cf. 1Pd 3, 15). Sempre e em todas as épocas, e mais fortemente neste momento pandêmico, em que nossa espécie está ameaçada, as crianças e os adolescentes são a nossa esperança.

 

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Segunda, 13 Julho 2020 11:12 Escrito por  Amós Santiago de Carvalho Mendes, SDB
A celebração dos 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho, aponta a urgente necessidade de promo(ver) os invisíveis.  

O ano de 2020 tem sido marcado por diversas situações, algumas muito desanimadoras. A pandemia do novo coronavírus, em certo sentido, apenas revelou e aprofundou um assombroso cenário de crises, as quais perpassam os diversos âmbitos da vida humana e suas relações com o planeta, crises desde o aspecto político-econômico até as bases da ética, da justiça e da paz. Imerso nesse panorama crítico é que se encontra o ser humano, muitas vezes com sua dignidade profundamente ferida ou desconsiderada, sempre em busca de qualidade de vida, inclusão social, cidadania, educação e uma série de demandas necessárias para lhe assegurar uma existência minimamente possível.

 

É exatamente neste cenário que o Brasil comemora os 30 anos da Lei Federal número 8.069, mais conhecida como ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, sancionada em 13 de julho de 1990. Diante disso, é oportuno questionar: como estão as crianças e os adolescentes de nossa pátria? Após três décadas de vigência dessa lei considerada “divisora de águas”, temos mesmo o que comemorar?

 

Longe dos extremismos ideológico-partidários, fora do sensacionalismo das mídias, do preconceito das massas ou da desconfiança em torno das diversas autoridades e instituições, o fato é que, em sua grande parte, a infância e a adolescência no Brasil continuam como periferias existenciais esquecidas e desprezadas. Para ilustrar em dados, conforme estudos realizados pela Fundação Abrinq a partir das estatísticas mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dados expressos no documento Cenário da Criança e do Adolescente 2019, no Brasil, 22,6% das crianças e adolescentes com idade entre 0 e 14 anos vivem em situação de extrema pobreza. Tal índice corresponde a mais de 9,4 milhões de pessoas em pleno desenvolvimento.

 

Ademais, entre outros índices alarmantes, 2,5 milhões de crianças e adolescentes até 17 anos trabalham, 12,8% dos adolescentes de 15 a 17 anos de idade estão fora da escola, 16,4% das adolescentes são mães antes dos 19 anos e, no sentido do lazer, 64,9% dos estabelecimentos de Educação Básica não possuem quadras esportivas.

 

Esses e tantos outros dados apenas reforçam que antes da complexidade política, econômica e sanitária trazida pela pandemia do corrente ano já existiam outras complexidades, todas em torno dos fundamentos, incluindo os direitos primários. Já estava instaurada no Brasil uma profunda crise social, de modo que os mais socialmente vulneráveis continuam padecendo em suas vulnerabilidades. Isso também faz confirmar que, mesmo após o advento e o reconhecimento dos chamados direitos fundamentais e universais, seja nos documentos internacionais ou na legislação brasileira, nossas crianças e nossos adolescentes, em grande parte, ainda não são tomados como pessoas em condição de desenvolvimento, ou mesmo como pessoas.

 

Ora, fora exatamente este o horizonte consolidado, por exemplo, tanto na reconhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada mediante a Assembleia Geral das Nações Unidas de 1948, a qual preconizou em seu Artigo VI que todo ser humano, em todos os lugares, tem o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei, quanto na Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas – ONU em 1959, a qual, por sua vez versou, entre outros princípios, sobre a necessária proteção social e a promoção do desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade para os referidos sujeitos de direito.

 

Prerrogativas jurídicas como essas, após um histórico de manifestações e de árdua atuação civil, foram incorporadas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, principalmente em seu artigo 227, e ratificadas de forma implementar no próprio ECA, consolidando no Brasil o que se concebe como doutrina da proteção integral, dotada de múltiplos princípios e garantias. A partir disso é que, superadas as atrocidades do passado, principalmente do Código de Menores de 1979 e sua “doutrina da situação irregular”, as crianças e os adolescentes brasileiros passaram a ser vistos como sujeitos de direitos e considerados em sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, o que requeria, sob o viés da “prioridade absoluta”, a proteção em todos os âmbitos e instâncias sociais.

 

Essas e outras garantias são sinal de que houve no Brasil a superação, ao menos no sentido intencionalmente teórico, de vários séculos de negligência, violação e abuso de direitos. No entanto, não se pode negar que mesmo no presente século, caracterizado pela liberdade e pelo império da ciência, da técnica e do capital, e apesar de todas as garantias juridicamente asseguradas, nem tudo está concretizado, uma vez que a efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, largamente difundidos, ainda está coberta de sombras e incertezas, sendo que, nos dizeres do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909 - 2004), uma coisa é proclamar direitos, outra coisa é desfrutá-los efetivamente.

 

Perante isso, embora ricamente fundada e paulatinamente implementada em algumas esferas do país, é possível afirmar que nas três últimas décadas falta a plena aplicabilidade da lei. De fato, ainda há crianças e adolescentes envoltos em vulnerabilidades variadas, e muitos de nossos pequeninos continuam fora do espectro da legislação, dado que as garantias previstas em lei não os alcançam, as proteções não se realizam e, assim não são concretizados os anseios mais profundos destes brasileiros em busca de desenvolvimento integral. São as crianças e os adolescentes invisíveis, e o mais difícil é constatar que isso não acontece por “falta de olhos”.

 

É exatamente neste sentido que se deve buscar, como dizia a filósofa Hannah Arendt (1906 - 1975) a essência dos direitos humanos, a saber, o direito a ter direitos, e promover, obstinadamente, em todos os espaços possíveis, a defesa dos meios capazes de possibilitar o desenvolvimento integral da pessoa, desde a mais tenra idade. A discussão empreendida até aqui, mais do que nostalgizar sobre situações do passado, mais do que filosofar sobre contextos fora da realidade, deseja reconduzir ao tema das exigências jurídicas como resposta cabível. É, deveras, uma resposta apropriada para uma situação inapropriada pois, de fato, o planeta está em guerra e, maior do que o inimigo viral, que a ciência atual se credita capaz e ensaia vencer, são os inimigos da infância e da adolescência que se travestem de uma engenharia social não integral e de uma economia tecnicista que promete um desenvolvimento fabulosamente irrestrito, às custas do sofrimento e da exploração de uns tantos, os mais vulneráveis e invisíveis.

 

É preciso promover – e ver – os invisíveis e talvez seja esta a síntese desses 30 anos de alguns avanços, sim, mas também de muitas inaplicabilidades do ECA e, no sentido político, alguns retrocessos. Para se prosseguir, é essencial acurar a visão deturpada, ainda ligada aos preconceitos e à mentalidade dos antigos códigos de menores, e fazer a travessia de uma imagem reducionista dos direitos das crianças e dos adolescentes para uma visão integral de homens e mulheres em crescimento. Aí se desvela uma nova perspectiva, um novo olhar que se atenha, pelo menos, ao mínimo suficiente para a garantia factual e existencial da dignidade desses sujeitos de direitos, a mesma dignidade apregoada e reclamada em tantos aparatos legais.

 

Enquanto perdurarem as divisões políticas e ideológicas, os interesses econômicos que subjugam pessoas a serviço de um sistema, enquanto houver falta de vontade política dos gestores, enquanto as grandes inteligências, lideranças e economias não se atentarem ao cuidado e ao respeito à vida, a efetivação da dignidade do ser humano desde a gestação, enquanto, enfim, houver pessoas tratadas como coisas, alienação, sobrevida nos subúrbios das cidades e nos ambientes rurais, exploração mediante a dominação dos mais humanamente favorecidos sobre os desumanamente desvalidos, houve inoperância e ineficácia dos direitos fundamentais. E enquanto existir uma criança que desconheça seus direitos e não se dê conta do seu próprio valor humano, o ECA terá sido insuficiente e a humanidade terá falhado na compreensão da dignidade da criança e do adolescente.

 

Ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição Federal, o ECA e tantos outros documentos continuem sendo apenas um sonho ou mais uma “declaração”, não se pode perder de vista a urgente oportunidade de se renovar e repropor, de forma generalizada, o diálogo com e sobre a criança e o adolescente, sua dignidade a ser protegida e suas vulnerabilidades a serem redimidas ou dirimidas. Por outro lado, justiça social que se espera, ainda que vivida democraticamente, não é plenamente realizada apenas com os esforços da autoridade política e demais poderes. O todo da justiça necessita do justo agir de todos. Sem esse movimento coletivo de cuidado e de promoção da pessoa, desde o período pré-natal, o ideal de justiça e de paz, tão acentuado ao longo da história humana, continuará distante da realidade.

 

O ECA, que nasceu mediante muita luta, não pode subsistir nem sobreviver sem ser na luta. O problema é que deixamos de lutar ou estamos lutando pouco, por isso estamos perdendo e regredindo numa história que tinha tudo para somente avançar. No que se trata de efetivar o ECA e garantir os direitos humanos de crianças e adolescentes, o combate é uma constante. Isso significa que uma nova cultura humana deve ser impulsionada, empreendida, e já é chegado o momento de se redirecionar as referências, os valores, resgatar princípios e de se assumir compromissos com a infância e a juventude, acreditar nela, educá-la, valorizá-la, revivê-la e deixá-la viver.

 

Todo o exposto e todo o esforço se trata de dar visibilidade aos invisíveis. Eles têm nome, têm história, uma face, um corpo frágil, uma dor a ser aliviada e uma alegria a ser promovida. Nós é que não temos tido olhos purificados e apurados o bastante para enxergarmos a profunda dignidade que reside neles. Em meio a tantos desafios, tal como conclama a Estreia Salesiana de 2020, como “bons cristãos e honestos cidadãos”, nós somos chamados a perseverar, defender e apresentar sempre as razões da nossa própria esperança (cf. 1Pd 3, 15). Sempre e em todas as épocas, e mais fortemente neste momento pandêmico, em que nossa espécie está ameaçada, as crianças e os adolescentes são a nossa esperança.

 

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