Entre o lúdico e o religioso

Sábado, 23 Agosto 2014 18:38 Escrito por  Pe. Osmar Hércules Padovan
“O espaço do lúdico passa a ser considerado não como lugar de se perder tempo, mas de se desenvolver as habilidades motoras de interação entre o individual e o social, entre o humano e o espiritual”

Quando inicia seu trabalho em favor de meninos pobres e abandonados, Dom Bosco já tem em mente um modelo de ambiente educativo e religioso, chamado oratório, prática desenvolvida por Filipe Nery no seculo XVI. Ele acrescenta ao termo a palavra festivo, pois seu objetivo era recolher crianças e jovens nos períodos em que eles estivessem desocupados.

O seu sistema educativo, chamado preventivo, já existia. João Bosco, depois de fazer uma contraposição com o sistema repressivo, o qual conheceu ao visitar as cadeias de Turim, e o sistema preventivo como método usado pelas escolas católicas, sem dúvida opta pelo preventivo. Acrescentando neste modo de educar as palavras razão, religião e amorevolezza, esta última traduzida como amor que educa. No oratório festivo, com o sistema preventivo, ele vai desenvolvendo sua missão.

Como aponta Pietro Braido, no livro Prevenir, não reprimir, em 1849, um professor da Universidade de Turim já destacava Dom Bosco com este depoimento: “Ele recolhe nos dias festivos, lá naquele recinto solitário, de 400 a 500 meninos acima de 8 anos, para afastá-los dos perigos e maus divertimentos e instruí-los nas normas da moral cristã. E isso, entretendo-os em agradáveis e honestas recreações, depois de terem assistido aos ritos e exercicios de piedade... Tudo isso para a educação moral e civil. Mas não descuida da educação fisica, deixando que no pátio ao lado do oratório, bem cercado, os exercícios de ginástica ou divertindo-se com perna de pau”.

 

Santidade é alegria

Inspirado em São Filipe Nery e em São Francisco de Sales, que recuperaram na espiritualidade da Igreja a dimensão da alegria como meio essencial para se alcançar a essência de Deus, Dom Bosco acolhe e aplica esta relação entre a santidade e alegria para a vida no pátio, onde se supõe estar vivendo na mais descontraída algazarra, na mais espontânea maneira de interagir entre educador e educando, e onde os laços de familiaridade se fazem presentes. O espaço do lúdico passa a ser considerado não como lugar de se perder tempo, mas de se desenvolver as habilidades motoras de interação entre o individual e o social, entre o humano e o espiritual.

O jornal Conciliatore Torinese comenta: “Dom Bosco, por meio dos jogos, conseguia obter progressos extraordinários na prática religiosa nos resultados escolares, em que seus jovens obedeciam aos educadores com alegria estampada no rosto”. Nos  sermões para os educandos, Dom Bosco falava com firmeza, relacionando a santidade com a alegria nestes termos: “Meus jovens, é hora de recreio. Permito-vos, ou melhor, recomendo-vos que estejais alegres o máximo que puderdes. Brincai, cantai, gritai, saltai, quebrai, fazei todas as diabruras que quiserdes, porém, não pratiqueis pecados”.

João Bosco vê a necessidade de desenvolver seu processo educativo integrando o social e o religioso. Cria pequenos grupos chamados de “companhias”. A função das companhias é, sobretudo, a do apostolado da educação dos próprios companheiros. O ambiente a princípio era espontâneo, pois nos momentos de jogos e de diversão mais se podia conhecer o perfil de cada jovem. Para o mediador-educador, chamado de assistente, cabia o olhar atento, mais do que de vigilância, o de condutor da interação educativa através da atividade lúdica.

No desenvolvimento do processo educativo através do lúdico, dos jogos, das brincadeiras, agregado aos valores religiosos desenvolvidos pelo ensino formal, Bosco se cercará de colaboradores, na maioria jovens, porque são mais abertos ao “novo”. Uma vez que seu método tinha como ponto de referência a prática, o modo de ser e de agir do educador, ele percebe que para transmitir esta nova mentalidade, integrando o lúdico e o religioso, é preciso preparar pessoas com capacidade de desenvolver pensamentos novos, sonhar projeções de “futuros novos”.

 

Aproximações entre Dom Bosco e Vygotsky

Lev S. Vygotsky nasceu em 17 de novembro de 1896 em Orsha, na Rússia, de família judaica. Sua educação até os quinze anos foi praticamente em casa. Sempre alimentou seu gosto pela leitura de diferentes áreas do conhecimento. Só a partir de 1924 ele decide colocar toda sua atenção de pesquisa na área da psicologia, com a principal preocupação de estudar os processos de transformação do desenvolvimento humano.

Sobre suas teorias, a que mais nos interessa está na descoberta do tipo de desenvolvimento que existe na criança: o real e o potencial. O real corresponde a tudo que a criança é capaz de fazer sem ajuda. O desenvolvimento potencial consiste nas realizações que só acontecem com a assistência de outra pessoa. Entre estas duas realidade há uma certa distância, à qual Vygotsky deu o nome de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Para realizar esta passagem entre o real e o potencial, a criança precisará de mediação tanto instrumental como social. A instrumental pode ser um brinquedo, um jogo... já a mediação social acontece por meio de uma pessoa, que pode ser um educador.

O professor, como mediador, tem como missão criar um ambiente, o mais democrático possível, para que as interrelações se desenvolvam de maneira que o aprendizado ocorra de uma forma agradável, pois para Vygotsky “educar, sempre significa mudar”. Vygotsky parte do pressuposto de que as características do indivíduo vão sendo formadas a partir da constante interação com o meio, entendido como mundo físico e social que inclui as dimensões interpessoal e cultural. Nesse processo, o indivíduo ao mesmo tempo que internaliza as formas culturais, as transforma e interfere em seu meio. É na relação dialética com o mundo que o sujeito se constitui e se liberta.

Em relação à teoria de Vygotsky, do educador como mediador, Dom Bosco já tinha esta percepção desde o início do seu trabalho. Ele próprio passou praticamente metade de sua vida vivendo a figura do educador-mediador. Para ele o lugar mais propício para este processo educacional acontecer é no ambiente do pátio e em contato com a natureza através de passeios, teatro, da música e da arte, onde se identificam: religioso, social e educacional.

Vygotsky afirma que a função do mediador é descobrir no aluno aquilo que ele tem de potencial e que sozinho não conseguirá se despertar, cabendo então ao educador mediar esta missão. João Bosco afirmava“que em todo jovem, por mais problemático que ele seja existe algo de bom. E cabe ao educador descobrir esse algo de bom e dele tirar proveito”.

Vygotsky afirmava que “educar sempre significa mudar”, assim, o processo educativo é um meio de elevar a qualidade da pessoa humana. João Bosco via que as crianças vindas da realidade de abandono, pobreza e violência, ao entrarem no oratório começavam seu processo de mudança. Na dimensão da utilização dos jogos para despertar valores e fortalecer comportamentos positivos, creio que tanto Bosco como Vygotsky tinham consciência disso e perceberam a vantagem eficiente de se educar através de atividades agradáveis e espontâneas, ao invés de mecanismos repressivos.

Dom Bosco foi um grande educador graças à capacidade de desenvolver habilidades, tanto humanas como técnicas, a partir da percepção do uso do lúdico para atingir a finalidade de educar por meio da experiência religiosa. Dentro de uma sociedade em transformação ele conseguiu se tornar um educador, no campo social e no religioso. O método educativo de Dom Bosco é uma referência importante para todos os que desejam formar crianças e jovens numa dinâmica integradora entre o religioso e o educacional, através do uso de jogos e de outras atividades lúdicas. Com isso os jovens se tornam os grandes protagonistas de uma nova maneira de viver a mensagem religiosa, desenvolvendo a espiritualidade da alegria, tão atual para os dias de hoje.

 

Padre Osmar Hércules Padovan, SDB, é doutorando no Programa de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde aprofunda os estudos sobre o tema “Dom Bosco, o revolucionário no século das revoluções”. O texto acima foi redigido com base em artigo apresentado ao Simpósio Internacional “Entre o Lúdico e o Religioso: A Religião nas interfaces do esporte e da festa popular”.

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Entre o lúdico e o religioso

Sábado, 23 Agosto 2014 18:38 Escrito por  Pe. Osmar Hércules Padovan
“O espaço do lúdico passa a ser considerado não como lugar de se perder tempo, mas de se desenvolver as habilidades motoras de interação entre o individual e o social, entre o humano e o espiritual”

Quando inicia seu trabalho em favor de meninos pobres e abandonados, Dom Bosco já tem em mente um modelo de ambiente educativo e religioso, chamado oratório, prática desenvolvida por Filipe Nery no seculo XVI. Ele acrescenta ao termo a palavra festivo, pois seu objetivo era recolher crianças e jovens nos períodos em que eles estivessem desocupados.

O seu sistema educativo, chamado preventivo, já existia. João Bosco, depois de fazer uma contraposição com o sistema repressivo, o qual conheceu ao visitar as cadeias de Turim, e o sistema preventivo como método usado pelas escolas católicas, sem dúvida opta pelo preventivo. Acrescentando neste modo de educar as palavras razão, religião e amorevolezza, esta última traduzida como amor que educa. No oratório festivo, com o sistema preventivo, ele vai desenvolvendo sua missão.

Como aponta Pietro Braido, no livro Prevenir, não reprimir, em 1849, um professor da Universidade de Turim já destacava Dom Bosco com este depoimento: “Ele recolhe nos dias festivos, lá naquele recinto solitário, de 400 a 500 meninos acima de 8 anos, para afastá-los dos perigos e maus divertimentos e instruí-los nas normas da moral cristã. E isso, entretendo-os em agradáveis e honestas recreações, depois de terem assistido aos ritos e exercicios de piedade... Tudo isso para a educação moral e civil. Mas não descuida da educação fisica, deixando que no pátio ao lado do oratório, bem cercado, os exercícios de ginástica ou divertindo-se com perna de pau”.

 

Santidade é alegria

Inspirado em São Filipe Nery e em São Francisco de Sales, que recuperaram na espiritualidade da Igreja a dimensão da alegria como meio essencial para se alcançar a essência de Deus, Dom Bosco acolhe e aplica esta relação entre a santidade e alegria para a vida no pátio, onde se supõe estar vivendo na mais descontraída algazarra, na mais espontânea maneira de interagir entre educador e educando, e onde os laços de familiaridade se fazem presentes. O espaço do lúdico passa a ser considerado não como lugar de se perder tempo, mas de se desenvolver as habilidades motoras de interação entre o individual e o social, entre o humano e o espiritual.

O jornal Conciliatore Torinese comenta: “Dom Bosco, por meio dos jogos, conseguia obter progressos extraordinários na prática religiosa nos resultados escolares, em que seus jovens obedeciam aos educadores com alegria estampada no rosto”. Nos  sermões para os educandos, Dom Bosco falava com firmeza, relacionando a santidade com a alegria nestes termos: “Meus jovens, é hora de recreio. Permito-vos, ou melhor, recomendo-vos que estejais alegres o máximo que puderdes. Brincai, cantai, gritai, saltai, quebrai, fazei todas as diabruras que quiserdes, porém, não pratiqueis pecados”.

João Bosco vê a necessidade de desenvolver seu processo educativo integrando o social e o religioso. Cria pequenos grupos chamados de “companhias”. A função das companhias é, sobretudo, a do apostolado da educação dos próprios companheiros. O ambiente a princípio era espontâneo, pois nos momentos de jogos e de diversão mais se podia conhecer o perfil de cada jovem. Para o mediador-educador, chamado de assistente, cabia o olhar atento, mais do que de vigilância, o de condutor da interação educativa através da atividade lúdica.

No desenvolvimento do processo educativo através do lúdico, dos jogos, das brincadeiras, agregado aos valores religiosos desenvolvidos pelo ensino formal, Bosco se cercará de colaboradores, na maioria jovens, porque são mais abertos ao “novo”. Uma vez que seu método tinha como ponto de referência a prática, o modo de ser e de agir do educador, ele percebe que para transmitir esta nova mentalidade, integrando o lúdico e o religioso, é preciso preparar pessoas com capacidade de desenvolver pensamentos novos, sonhar projeções de “futuros novos”.

 

Aproximações entre Dom Bosco e Vygotsky

Lev S. Vygotsky nasceu em 17 de novembro de 1896 em Orsha, na Rússia, de família judaica. Sua educação até os quinze anos foi praticamente em casa. Sempre alimentou seu gosto pela leitura de diferentes áreas do conhecimento. Só a partir de 1924 ele decide colocar toda sua atenção de pesquisa na área da psicologia, com a principal preocupação de estudar os processos de transformação do desenvolvimento humano.

Sobre suas teorias, a que mais nos interessa está na descoberta do tipo de desenvolvimento que existe na criança: o real e o potencial. O real corresponde a tudo que a criança é capaz de fazer sem ajuda. O desenvolvimento potencial consiste nas realizações que só acontecem com a assistência de outra pessoa. Entre estas duas realidade há uma certa distância, à qual Vygotsky deu o nome de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Para realizar esta passagem entre o real e o potencial, a criança precisará de mediação tanto instrumental como social. A instrumental pode ser um brinquedo, um jogo... já a mediação social acontece por meio de uma pessoa, que pode ser um educador.

O professor, como mediador, tem como missão criar um ambiente, o mais democrático possível, para que as interrelações se desenvolvam de maneira que o aprendizado ocorra de uma forma agradável, pois para Vygotsky “educar, sempre significa mudar”. Vygotsky parte do pressuposto de que as características do indivíduo vão sendo formadas a partir da constante interação com o meio, entendido como mundo físico e social que inclui as dimensões interpessoal e cultural. Nesse processo, o indivíduo ao mesmo tempo que internaliza as formas culturais, as transforma e interfere em seu meio. É na relação dialética com o mundo que o sujeito se constitui e se liberta.

Em relação à teoria de Vygotsky, do educador como mediador, Dom Bosco já tinha esta percepção desde o início do seu trabalho. Ele próprio passou praticamente metade de sua vida vivendo a figura do educador-mediador. Para ele o lugar mais propício para este processo educacional acontecer é no ambiente do pátio e em contato com a natureza através de passeios, teatro, da música e da arte, onde se identificam: religioso, social e educacional.

Vygotsky afirma que a função do mediador é descobrir no aluno aquilo que ele tem de potencial e que sozinho não conseguirá se despertar, cabendo então ao educador mediar esta missão. João Bosco afirmava“que em todo jovem, por mais problemático que ele seja existe algo de bom. E cabe ao educador descobrir esse algo de bom e dele tirar proveito”.

Vygotsky afirmava que “educar sempre significa mudar”, assim, o processo educativo é um meio de elevar a qualidade da pessoa humana. João Bosco via que as crianças vindas da realidade de abandono, pobreza e violência, ao entrarem no oratório começavam seu processo de mudança. Na dimensão da utilização dos jogos para despertar valores e fortalecer comportamentos positivos, creio que tanto Bosco como Vygotsky tinham consciência disso e perceberam a vantagem eficiente de se educar através de atividades agradáveis e espontâneas, ao invés de mecanismos repressivos.

Dom Bosco foi um grande educador graças à capacidade de desenvolver habilidades, tanto humanas como técnicas, a partir da percepção do uso do lúdico para atingir a finalidade de educar por meio da experiência religiosa. Dentro de uma sociedade em transformação ele conseguiu se tornar um educador, no campo social e no religioso. O método educativo de Dom Bosco é uma referência importante para todos os que desejam formar crianças e jovens numa dinâmica integradora entre o religioso e o educacional, através do uso de jogos e de outras atividades lúdicas. Com isso os jovens se tornam os grandes protagonistas de uma nova maneira de viver a mensagem religiosa, desenvolvendo a espiritualidade da alegria, tão atual para os dias de hoje.

 

Padre Osmar Hércules Padovan, SDB, é doutorando no Programa de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde aprofunda os estudos sobre o tema “Dom Bosco, o revolucionário no século das revoluções”. O texto acima foi redigido com base em artigo apresentado ao Simpósio Internacional “Entre o Lúdico e o Religioso: A Religião nas interfaces do esporte e da festa popular”.

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