Ser místico não se reduz apenas à espiritualidade cristã e católica. A busca do Outro – transcendente – extrapola nossas crenças, religiões e tradições. O místico desenvolve uma intensa relação com o sagrado. Torna-se envolvido, imerso e absorvido pela experiência do ser amado que chega até a configurar-se a ele.
Entendamos o que é mística
Há místicos em outras crenças e também em ambientes não cristãos. Místico é uma qualidade que se desenvolve ao longo da vida de uma pessoa e, para nós cristãos, no contato com a chama preciosa que aquece o coração (Lc 24, 32). No entanto, para nós, religiosos salesianos, imersos na sociedade líquida onde tudo passa velozmente e quase nada nos toca à carne, mergulhar na mística é um desafio que pode esgotar nossas capacidades ou se tornar um chavão que se desfaz com o tempo. Num instituto religioso totalmente dedicado à missão, cujo contato com os jovens e o povo em geral é cotidiano, podemos facilmente nos desculpar de que não temos tempo para a experiência mística.
Atenção: mística não significa apenas oração contemplativa. A tentação é pensar que a mística está ligada diretamente à vida monástica, mas não é bem assim. Então, como definir a mística salesiana? Garimpando no Capítulo Geral (CG 27) encontrei expressões que nos dão pistas para entender o significado do ser místico salesiano:
Enraizar no mistério da Encanação, gastar-se pelos jovens (n. 33); encontro com Deus (n. 34); fraternidade (n. 40), missão (n. 43), comunhão (n. 45); eucaristia e reconciliação, oração com a Palavra de Deus (n. 65); testemunho dos conselhos evangélicos (n. 66); harmonia entre oração e trabalho, deixar-se guiar, saber partilhar (n. 67).
A liquidez da existência
Essas expressões podem dizer tudo sobre mística ou nada. Estamos cheios de chavões que se desfazem como água no cotidiano. O mal-estar da liquidez pós-moderna que afeta a vida religiosa nos joga para dentro do niilismo e de uma vida sem sentido.
A verdadeira experiência mística, ao contrário, nos leva à essência de nossas vidas porque é animada pelo Espírito, o mesmo que pairava sobre as águas desde o início dos tempos e levou Jesus ao deserto (Gn 1,1; Mc 1,12). Contudo, a necessidade de realizar o encontro com Deus brota da sede que temos da verdade, sentido e prazer. O paradoxo desta busca de saciar a sede é que o encontro com a verdade pode nos fazer sofrer, como bem dizia a grande mística e doutora da Igreja Santa Tereza de Ávila: “A dor que eu então sentia em nada se parece com o tormento de que falo agora, distinguindo-se como se distingue uma coisa muito corporal de uma muito espiritual, e creio que não exagero. (...) O segundo sofrimento, como eu disse, não tem a nossa participação; muitas vezes, vem de repente um desejo cuja origem não se sabe, desejo que penetra a alma por completo até fatigá-la”.
Constatamos, assim, que a experiência mística é dolorosa, não que seja uma dor física que um medicamento pode curar, mas é a dor na alma como relata a própria Santa depois de suas experiências fortes de encontro com Deus e, ainda mais recente, Madre Tereza de Calcutá, quando revela ao arcebispo Périer: “Anseio, com uma ânsia dolorosa, ser inteiramente para Deus, ser santa de tal maneira que Jesus possa viver plenamente a Sua vida em mim. Quanto mais O quero, menos sou querida. Quero amá-lo como Ele nunca foi amado, porém, existe esta separação, este vazio terrível, este sentimento de ausência de Deus. Há mais de quatro anos que não encontro auxílio na direção espiritual. Dentro de mim tudo é frio como gelo”.
É a dor da ausência-presença de Deus que nos faz passar pela aridez e sede para compreender na própria carne o sentido da dor do irmão que sofre. Isto também é mística.
A mística abre as chagas interiores mais profundas, põe em evidência nossas fraquezas, pecados, lutas psicológicas e virtudes, que até podemos disfarçar no contato com os outros, mas não podemos enganar o que somos de fato no fundo do poço de nosso deserto existencial. A mística é um processo de purificação e humildade – purgatório – como bem ensinou Santa Catarina de Genova. O papa emérito Bento XVI afirma que em Catarina “o purgatório não é apresentado como um elemento da paisagem das vísceras da terra: é um fogo não exterior, mas interior. Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus”.
A mística passa por essa fase purgativa. Assim interpreto o CG 27 quando aponta para a “mística da fraternidade” (n. 40) como um testemunho de vida na cultura do encontro-desencontro que nos purifica do egoísmo, do individualismo e da indiferença. Essa mística nos purifica de fato. É o nosso purgatório cotidiano. A vida fraterna em comunidade não se reduz a reunir algumas pessoas sob um mesmo teto, mas à construção de laços afetivos, amizade, respeito, partilha, confiança. E tudo isto, requer purificação de si mesmo, ou seja, mística e humildade.