Onde o sangue derramado gera vida

Terça, 11 Junho 2019 13:16 Escrito por 
Em seu artigo para o Boletim Salesiano no mês de junho, o Reitor-mor dos Salesianos, padre Ángel Fernández Artime, fala de sua visita à Aldeia de Meruri, em Mato Grosso: “Foi uma emoção muito forte encontrar-me com jovens Bororo e Xavante juntos, com missionários que diariamente partilham a vida com eles e celebrar no local do martírio daqueles que derramaram o sangue para os defender”, conta ele.  

Meus queridos amigos, queria condensar no título a experiência que vivi no mês passado. Visitei as presenças salesianas do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil. Os primeiros salesianos chegaram aqui há 125 anos, à então aldeia de Cuiabá, que atualmente é uma cidade de 600 mil habitantes, porta da maravilha mundial que é o Pantanal.

 

Tinha eu pedido para me encontrar com os povos indígenas com os quais os salesianos viveram durante décadas. Queria levar o testemunho da Congregação às lendárias missões do Mato Grosso. Ao crepúsculo de um dia surpreendente, cheguei à região dos índios Bororo em Meruri.

 

Um pouco de história

Os filhos de Dom Bosco, em 1894, chefiados pelo padre Giovanni Balzola, abriram uma nova missão no Mato Grosso, em Cuiabá, dando início à primeira evangelização dos Bororo, com a fundação da Colônia do Sagrado Coração. Em 1906 é criada a Missão de Sangradouro, que depois hospedará os Xavante que tinham sido expulsos e quase aniquilados na região de Parabuburi. A primeira tentativa de abordar os índios Xavante ocorreu em novembro de 1934. Nasceu do sangue dos missionários salesianos, padre Giovanni Fuchs e padre Pedro Sacilotti, vítimas de uma emboscada.

 

Já em 1926 a contínua, estável e sólida presença dos missionários e estas missões Xavante e Bororo era uma realidade. Presenças como Sangradouro, São Marcos e Meruri consolidaram-se até hoje. Quando os Xavante chegaram à aldeia de Sangradouro, acolhidos pelos salesianos e pelos Bororo, apesar de terem sido povos inimigos na história, a população total dos Xavante não chegava aos 900 membros.

 

Acolhida em Meruri

Em Meruri receberam-nos com afeto e com o seu tradicional acolhimento. Também gostei muito da oportunidade de me encontrar com todos os missionários que atualmente partilham a vida com esta gente. Estavam presentes 18 salesianos, oito Filhas de Maria Auxiliadora e duas irmãs da Congregação de Santa Laura (conhecidas como “Lauritas”), irmãs colombianas com as quais colaboramos para o bem dos nossos irmãos indígenas.

 

Na manhã seguinte vivemos dois momentos de grande beleza, humanidade e significado histórico e espiritual.

 

O primeiro foi o encontro com 40 jovens Xavante (rapazes e moças) que vieram para tomar parte no dia com os Bororo, por ocasião da nossa presença. Nunca até hoje Bororo e Xavante se tinham encontrado deste modo. Os jovens Bororo e Xavante tornaram possível aquilo que os adultos nunca tinham feito.

 

Conversamos, dançamos, cantamos e celebramos a Eucaristia; comemos juntos e éramos pelo menos uma centena.

 

Pe. Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo

O segundo momento foi ainda mais comovente. Celebramos a Eucaristia no centro da aldeia, o lugar onde o salesiano padre Rodolfo Lunkenbein, missionário alemão, e o índio Bororo Simão Cristino foram mortos pelos “fazendeiros”, os proprietários de grandes latifúndios ferozmente irritados contra os salesianos que defendiam os direitos dos indígenas às suas terras. No dia 15 de julho de 1976, chegaram à aldeia e, após uma discussão, atingiram o padre Rodolfo. O índio Simão acorreu a defendê-lo e foi também assassinado.

 

No dia da minha visita, tive oportunidade de cumprimentar, falar e agradecer a um ancião testemunha do martírio, também ele atingido, mas salvo pelos médicos. Estava ali, humildemente presente, na manhã da nossa Eucaristia. A causa de santidade dos nossos mártires, ambos Servos de Deus, está sendo finalizada.

 

Para mim foi uma emoção muito forte encontrar-me na terra dos Bororo, encontrar-me com os jovens Bororo e Xavante que queriam viver juntos este momento, encontrar-me com irmãos e irmãs missionários que diariamente compartilham a vida com eles e celebrar a Eucaristia no lugar do martírio daqueles que derramaram o sangue para os defender. O mote escolhido por Rodolfo Lunkenbein para a sua Ordenação era: “Vim para servir e dar a vida”. Na sua última ida à Alemanha, em 1974, a sua mãe pedia-lhe que tivesse cuidado, porque a tinham informado dos perigos que o filho corria. Ele respondeu: “Mãe, por que te preocupas? Não há nada mais belo do que morrer pela causa de Deus. Seria este o meu sonho”.

 

Milagres de vida e boas notícias

Aos primeiros alvores da aurora, com toda a comunidade Bororo, fizemos uma pequena procissão até às sepulturas de Simão Cristino e Rodolfo Lunkenbein, rezando por todos os missionários salesianos. O meu pensamento voava para a África, para a fronteira do Burkina Fasso onde, há pouco mais de dois meses, ao nosso irmão salesiano, o missionário espanhol padre César Antonio Fernández, tinha sido tirada a vida, só porque era sacerdote e missionário.

 

O título da minha mensagem refere-se precisamente a estas duas histórias. O sangue que é derramado e que produz tanta dor gera também a vida. Constatei-o nas aldeias dos Bororo e dos Xavante e, também, na África, onde todos os dias se realizam “milagres de vida”.

 

Estas linhas querem ser um “obrigado” a tantas vidas dadas com ilimitada generosidade. E um “obrigado” a tantos de vocês, amigos e leitores do Boletim Salesiano, que continuam a confiar no bem que, juntos, procuramos fazer neste mundo sempre necessitado de boas notícias que alegram o coração e de histórias que mudam a vida, porque não há só mal neste nosso mundo. Pelo contrário. Há muito bem que diariamente é semeado e germina, mas não faz notícia. Ao invés, o mal, as tragédias, a violência e a morte, esses, sim, fazem notícia.

 

Por isso devemos ser difusores de boas notícias. Como acabei de contar, mesmo na dor da morte, há fatos que geram a vida.

 

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Onde o sangue derramado gera vida

Terça, 11 Junho 2019 13:16 Escrito por 
Em seu artigo para o Boletim Salesiano no mês de junho, o Reitor-mor dos Salesianos, padre Ángel Fernández Artime, fala de sua visita à Aldeia de Meruri, em Mato Grosso: “Foi uma emoção muito forte encontrar-me com jovens Bororo e Xavante juntos, com missionários que diariamente partilham a vida com eles e celebrar no local do martírio daqueles que derramaram o sangue para os defender”, conta ele.  

Meus queridos amigos, queria condensar no título a experiência que vivi no mês passado. Visitei as presenças salesianas do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil. Os primeiros salesianos chegaram aqui há 125 anos, à então aldeia de Cuiabá, que atualmente é uma cidade de 600 mil habitantes, porta da maravilha mundial que é o Pantanal.

 

Tinha eu pedido para me encontrar com os povos indígenas com os quais os salesianos viveram durante décadas. Queria levar o testemunho da Congregação às lendárias missões do Mato Grosso. Ao crepúsculo de um dia surpreendente, cheguei à região dos índios Bororo em Meruri.

 

Um pouco de história

Os filhos de Dom Bosco, em 1894, chefiados pelo padre Giovanni Balzola, abriram uma nova missão no Mato Grosso, em Cuiabá, dando início à primeira evangelização dos Bororo, com a fundação da Colônia do Sagrado Coração. Em 1906 é criada a Missão de Sangradouro, que depois hospedará os Xavante que tinham sido expulsos e quase aniquilados na região de Parabuburi. A primeira tentativa de abordar os índios Xavante ocorreu em novembro de 1934. Nasceu do sangue dos missionários salesianos, padre Giovanni Fuchs e padre Pedro Sacilotti, vítimas de uma emboscada.

 

Já em 1926 a contínua, estável e sólida presença dos missionários e estas missões Xavante e Bororo era uma realidade. Presenças como Sangradouro, São Marcos e Meruri consolidaram-se até hoje. Quando os Xavante chegaram à aldeia de Sangradouro, acolhidos pelos salesianos e pelos Bororo, apesar de terem sido povos inimigos na história, a população total dos Xavante não chegava aos 900 membros.

 

Acolhida em Meruri

Em Meruri receberam-nos com afeto e com o seu tradicional acolhimento. Também gostei muito da oportunidade de me encontrar com todos os missionários que atualmente partilham a vida com esta gente. Estavam presentes 18 salesianos, oito Filhas de Maria Auxiliadora e duas irmãs da Congregação de Santa Laura (conhecidas como “Lauritas”), irmãs colombianas com as quais colaboramos para o bem dos nossos irmãos indígenas.

 

Na manhã seguinte vivemos dois momentos de grande beleza, humanidade e significado histórico e espiritual.

 

O primeiro foi o encontro com 40 jovens Xavante (rapazes e moças) que vieram para tomar parte no dia com os Bororo, por ocasião da nossa presença. Nunca até hoje Bororo e Xavante se tinham encontrado deste modo. Os jovens Bororo e Xavante tornaram possível aquilo que os adultos nunca tinham feito.

 

Conversamos, dançamos, cantamos e celebramos a Eucaristia; comemos juntos e éramos pelo menos uma centena.

 

Pe. Rodolfo Lunkenbein e Simão Bororo

O segundo momento foi ainda mais comovente. Celebramos a Eucaristia no centro da aldeia, o lugar onde o salesiano padre Rodolfo Lunkenbein, missionário alemão, e o índio Bororo Simão Cristino foram mortos pelos “fazendeiros”, os proprietários de grandes latifúndios ferozmente irritados contra os salesianos que defendiam os direitos dos indígenas às suas terras. No dia 15 de julho de 1976, chegaram à aldeia e, após uma discussão, atingiram o padre Rodolfo. O índio Simão acorreu a defendê-lo e foi também assassinado.

 

No dia da minha visita, tive oportunidade de cumprimentar, falar e agradecer a um ancião testemunha do martírio, também ele atingido, mas salvo pelos médicos. Estava ali, humildemente presente, na manhã da nossa Eucaristia. A causa de santidade dos nossos mártires, ambos Servos de Deus, está sendo finalizada.

 

Para mim foi uma emoção muito forte encontrar-me na terra dos Bororo, encontrar-me com os jovens Bororo e Xavante que queriam viver juntos este momento, encontrar-me com irmãos e irmãs missionários que diariamente compartilham a vida com eles e celebrar a Eucaristia no lugar do martírio daqueles que derramaram o sangue para os defender. O mote escolhido por Rodolfo Lunkenbein para a sua Ordenação era: “Vim para servir e dar a vida”. Na sua última ida à Alemanha, em 1974, a sua mãe pedia-lhe que tivesse cuidado, porque a tinham informado dos perigos que o filho corria. Ele respondeu: “Mãe, por que te preocupas? Não há nada mais belo do que morrer pela causa de Deus. Seria este o meu sonho”.

 

Milagres de vida e boas notícias

Aos primeiros alvores da aurora, com toda a comunidade Bororo, fizemos uma pequena procissão até às sepulturas de Simão Cristino e Rodolfo Lunkenbein, rezando por todos os missionários salesianos. O meu pensamento voava para a África, para a fronteira do Burkina Fasso onde, há pouco mais de dois meses, ao nosso irmão salesiano, o missionário espanhol padre César Antonio Fernández, tinha sido tirada a vida, só porque era sacerdote e missionário.

 

O título da minha mensagem refere-se precisamente a estas duas histórias. O sangue que é derramado e que produz tanta dor gera também a vida. Constatei-o nas aldeias dos Bororo e dos Xavante e, também, na África, onde todos os dias se realizam “milagres de vida”.

 

Estas linhas querem ser um “obrigado” a tantas vidas dadas com ilimitada generosidade. E um “obrigado” a tantos de vocês, amigos e leitores do Boletim Salesiano, que continuam a confiar no bem que, juntos, procuramos fazer neste mundo sempre necessitado de boas notícias que alegram o coração e de histórias que mudam a vida, porque não há só mal neste nosso mundo. Pelo contrário. Há muito bem que diariamente é semeado e germina, mas não faz notícia. Ao invés, o mal, as tragédias, a violência e a morte, esses, sim, fazem notícia.

 

Por isso devemos ser difusores de boas notícias. Como acabei de contar, mesmo na dor da morte, há fatos que geram a vida.

 

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