“Chegando em casa, antes de adormecer, ouvimos estouros, mas não são os de fim de ano. São tiros de fuzil ou de morteiro. Escuto-os também pela manhã, tão logo acordo com a luz que entra pela janela. Meu Deus, estou num país no qual há gente que atira e gente que morre”. Assim conta o salesiano coadjutor Giampietro Petternon, presidente da ONG italiana “Missioni Don Bosco” (Missões Dom Bosco), sobre sua viagem missionária à Síria. Leia a seguir alguns trechos de seu emocionado relato.
Damasco: 20 de outubro
A comunidade salesiana de Damasco é formada por quatro padres. Administram um belíssimo oratório frequentado por 1.300 crianças, adolescentes e jovens. Todos cristãos, de diversas confissões e ritos. O espaço do pátio e das salas onde se reúnem é pequeno e, por isso, o oratório fica aberto em dias alternados por faixas etárias e, por evidentes razões de segurança, um micro-ônibus passa para pegá-los em pontos pré-estabelecidos.
Também nós entramos no micro-ônibus. Primeiro, sobem os garotos de 16 e 17 anos. No ponto seguinte sobem algumas meninas da mesma idade. Todos são bonitos e bem vestidos. E como não poderia ser assim, visto que se encontram juntos na sexta-feira à tarde para trocar algumas palavras tranquilamente? Como é belo ver os jovens que, apesar do drama do país, olham para o futuro e sonham.
Continuando a visita a Damasco, escutamos histórias de sofrimento, destruição e morte. Atravessando a cidade, nos aproximamos dos bairros periféricos nas mãos dos rebeldes. O que vemos é impressionante. Edifícios retorcidos sobre si mesmos, muros escurecidos pela fumaça, buracos nas paredes que antes eram de quartos, salas, casas de gente comum.
Por algumas horas também vivemos como turistas na cidade velha e percorremos uma antiga e estreita rua. De repente um forte tiro de morteiro, muito próximo, que nos paralisa. Pouco depois, um senhor sentado à mesa de um bar faz um gesto para dizer que não é nada, que podemos ir adiante. No dia seguinte, recebemos a notícia de que um tiro de morteiro caíra naquela pequena rua, em meio ao pequeno comércio característico do local, e fizera sete mortos. Nós passamos por ali, no mesmo lugar e na mesma hora, mas por sorte no dia anterior.
Kafroun: 23 de outubro
Concluída a visita a Damasco, fomos para Kafroun, região montanhosa no oeste da Síria. Ali o ar é mais fresco e a vegetação, mais viçosa; e Kafroun representa um lugar de refúgio para os sírios que moram no interior. Entretanto, cada cidade síria pagou ou está pagando o seu preço: um preço de destruição e horror de uma guerra totalmente insensata.
Para chegar, subimos por uma estrada que atravessa pequenos povoados, muitos dos quais habitados quase inteiramente por cristãos. Nos postes estão pregadas fotos de rostos de jovens. Pergunto se há eleições (imaginando que sejam candidatos a prefeito do povoado). A resposta me atira para o meio do drama do país que estamos visitando: são mártires civis, isto é, mortos no interior da guerra e que moravam no povoado.
A casa salesiana de Kafroun serve às obras salesianas da Síria e do Líbano como ponto de referência para os campos-escola de meninos e jovens, e para dias de formação de salesianos e de membros da Família Salesiana. Trata-se de uma presença salesiana que nasceu em 1992, mas que foi usada por pouco menos de 20 anos apenas.
De fato, em 2009 os salesianos fecharam a comunidade e só usam a casa para férias. Entretanto, quando explodiu a guerra, reabriram-na por dois anos, para as muitas famílias de Alepo arrancadas de seus lares pelos combates. Algo interessante é que, nos poucos anos de presença estável da comunidade salesiana no local, formou-se um grupo de salesianos cooperadores, pais e mães que continuam levando adiante o estilo educativo de Dom Bosco.
No fim de semana são eles que abrem a casa aos jovens do lugar e animam o oratório, assim como a missa dominical, frequentada por 200 pessoas, em grande parte, jovens.
Nota-se que aqui o povo é mais sereno: os rebeldes não chegaram. A vida flui mais lenta, embora as consequências da guerra – as fotos dos mártires civis, a presença de famílias de desabrigados, os postos de bloqueio em cada cruzamento de rua, a falta de um trabalho estável –também ali sejam sentidas e atinjam cada família do lugar.
Alepo: 27 de outubro
Deixamos Kafroun e nos dirigimos para Alepo. Devido ao fechamento da rodovia entre Homs e Alepo, em alguns pontos ainda sob o controle dos rebeldes, fomos pelo rumo de Raqqa e, depois de cerca de três horas de viagem, cruzamos a estrada que vem de Palmira. Dos dois lados da estrada há carcaças de veículos incendiados, enferrujados: fica evidente que estamos em guerra!
Às portas de Alepo se veem edifícios destruídos. O que resta é apenas o testemunho de uma brutalidade e desumanidade tais que fica impossível explicar. Alguns edifícios continuam de pé, íntegros, mas sem um vidro sequer nas janelas. Dão mesmo a impressão de quarteirões fantasmas.
Chegamos ao oratório salesiano de Alepo. A acolhida é calorosa e familiar. Mais uma vez os jovens sírios nos dão um lindo testemunho do que é civilização, boa educação, respeito pelo outro, desejo de conhecer-se e estar juntos de boa vontade...
A casa salesiana está no centro, mas na parte oeste de Alepo; por isso não foi sitiada pelos rebeldes. Entretanto, faltavam apenas 500 metros para achar-se na linha de frente dos combates violentos. Os salesianos são quatro: dois recém-chegados e dois que passaram ali todos os anos da guerra. Pode parecer estranho, mas a obra educativa nunca deixou de ser um oratório salesiano normal: o que é extraordinário é justamente o fato de ser um oratório comum.
No dia seguinte, fomos aos bairros de Alepo destruídos nos momentos mais cruéis da guerra. Uma animadora do oratório veio ao nosso encontro e nos acompanhou para ver o lugar onde ficava a sua casa. Para chegar lá, atravessamos as casas de outros: não adianta pedir licença para entrar; entra-se por um buraco na parede e se atravessam salas e quartos vazios e destruídos.
Vimos um espaço que devia ser um mercadinho, agora ajeitado para estábulo de cabras. Cabras na cidade! O povo pobre sobrevive como pode e, agora que as bombas e os atiradores de tocaia silenciaram, se adapta a viver como pode. Pelas ruas empoeiradas e cinzentas passa – rápida – a gente. Também numerosas crianças. Também neste inferno ressurge a vida!